Prepare o fígado.
Superamos a sala de espera e finalmente tivemos a consulta com a psiquiatra. Diferentemente da primeira vez, quando Franco resolveu rachar a minha cara na frente da médica, tínhamos relatórios da fono e da pediatra com quem ele já fazia tratamento. O diagnóstico de autismo já estava praticamente fechado, só precisávamos da consulta com a psiquiatra para ter o laudo e fazer um acompanhamento multidisciplinar.
Entramos na sala minúscula, toda branca, quase não havia espaço para a médica, um residente, Franco e eu. Como um pequeno lince, Franco avistou uma caixa de blocos em outra sala e deu um berro. Trouxeram a caixa, e ele começou a brincar num canto.
- Me conta, o que você faz?
- Como assim?
- Trabalho.
- Ah, sou jornalista, trabalho em casa.
- Hm. Mas escreve pra onde?
- Faço frilas sobre vários assuntos... Escrevo sobre novelas também.
- Pra onde?
Você viu?
(Gente, era pra trazer o currículo???)
Tentei falar um pouquinho sobre o Franco, explicar que ele tem evoluído com a fono, que começaria a psicóloga em breve. Nessa hora, ele olhou pra mim e sorriu.
- Viu como ele sorri? – comentou a médica com seu residente enquanto apontava meu filho com a caneta.
O rapaz magro, com barba por fazer (e um tanto velho para minha referência de estagiário), ficou abaixado para tentar uma aproximação, e Franco fechou a cara na hora.
- Bom, vamos fazer vários exames, tá? Inclusive, já vamos ver como está o fígado para quando entrarmos com a medicação.
- É... Que tipo de medicação? O pessoal que acompanha ele disse que ele está evoluindo bem e que com as terapi...
Calada, torci para que ela preenchesse logo as guias de exames que eu já tinha decidido não fazer antes mesmo de sair daquela sala"
- A medicação é ótima, viu? Crianças medicadas ficam mais expansivas, melhoram na escola, são mais carinhosas com os pais, olha que bom! Elas dão, ó, uma guinada mesmo – disse, imitando a decolagem de um avião com a mão.
- Então... É que na verdade, até agora, ele tem interagido bem na escol...
- Você vai sentir muita diferença. As crianças ficam ótimas, felizes! Quase se nivelam às crianças normais (fez aspas no ar com os dedos). Existe muito mito sobre remédios. Mas é que nem falam muito dessa tal de inclusão, né? Ficam colocando as crianças todas juntas... Não seria melhor uma sala separada, com atenção só pra elas? Então!
“Ah, sim, porque, afinal de contas, quando elas crescerem, vai ter um mundo SEPARADO só pra elas viverem, né????”, pensei, indignada, enquanto tentava fazer uma cara neutra. Calada, torci para que ela preenchesse logo as guias de exames que eu já tinha decidido não fazer antes mesmo de sair daquela sala. Ontem, quinta-feira (28) de abril, foi a data marcada para o retorno. Em vez de se preparar para ir à consulta, Franco ficou pronto para mais um dia de aula.
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* Odara Gallo é formada em Jornalismo desde 2006, mas só criou coragem para ter um blog dez anos depois, quando descobriu que seu filho, Franco, tinha Transtorno no Espectro Autista. Às sextas, escreve sobre sua experiência no Delas. "Num dia Franco era uma criança diferente. No seguinte, eu era mãe de uma criança autista. Um pouco do que aconteceu dentro de mim com essa mudança quis sair e se desenhar em palavas. Nasceu esse blog. Quê Cê Qué?"