No domingo (16), as redes sociais e os noticiários foram tomados pela cena de religiosos ajoelhados orando para impedir que uma menina de 10 anos estuprada pelo tio fizesse um aborto . No entanto, o posicionamento não é consenso entre os cristãos. “A religião é usada como elemento para dar razão a um conservadorismo moral que fecha os olhos para a realidade. Como querem garantir a vida de um feto em troca da vida de uma menina? É uma ignorância e falsa moral enorme”, comenta Regina Jurkewicz, 65 anos, doutora em Ciências da Religião e integrante do grupo “Católicas pelo Direito de Decidir”.
No caso da menina estuprada pelo tio, o aborto é um direito garantido por lei – a legislação brasileira permite a prática em três casos: estupro, risco de morte à gestante e feto anencéfalo, ou seja, não cabem discussões ou intervenções religiosas. Porém, a divergência não foi apenas nesse episódio. Na verdade, existem grupos de mulheres católicas e evangélicas que há décadas lutam pela descriminalização do aborto no Brasil. Elas querem que todas as mulheres tenham acesso a um procedimento legal e seguro pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
“A questão do aborto não deveria ser tratada pelo viés religioso, que propõe uma moral abstrata de defesa da vida. É muito mais uma questão de ética laica, porque nem todas as mulheres que recorrem ao aborto são religiosas. O país deveria garantir esse direito assim como deve garantir o direito ao pré-natal, à gravidez e ao nascimento seguro”, pontua Regina enquanto lembra que, sendo crime ou não, a prática já é uma realidade do país.
Segundo o Ministério da Saúde, acontecem 1 milhão de abortos induzidos todos os anos no Brasil e uma mulher morre a cada dois dias vítima de aborto inseguro. Além disso, de acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) da Anis – Instituto de Bioética, entre as mulheres que abortam, 56% são católicas e 25% evangélicas ou protestantes.
“Além da criminalização não impedir que os abortos aconteçam, impõe às mulheres uma dor e uma violência maior do que já são submetidas quando tomam a decisão de abortar. Muitas vezes, aquelas que não tem condições financeiras – sendo a maioria mulheres negras, acabam morrendo por fazerem procedimentos extremamente inseguros”, apontam as mulheres da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, que, por questões de segurança, preferem não se identificar – uma das integrantes do grupo inclusive precisou sair do Brasil após receber ameaças.
Para Priscila Neves Moreira, 27 anos, integrante do grupo de evangélicas “Fé Ministras”, que reflete sobre o cristianismo com base na teologia feminista, a questão do aborto é um problema de saúde pública no país, na qual não cabe à Igreja intervir. “Não há nada na Bíblia para orientar uma opinião contra ou a favor do aborto”, afirma.
Não são apenas cristãs organizadas que defendem a pauta. Valéria Rodrigues, 25 anos, é católica e não participa de nenhum grupo de militância, mas é a favor do aborto legal e seguro. “Independente de religião, a minha fé é centralizada no que Jesus nos ensinou: respeitar e não fazer julgamentos. Sou a favor da descriminalização do aborto, uma vez que as mulheres têm o direito de escolha, o livre arbítrio de querer ou não seguir com a gravidez.”
Dogma e fundamentalismo
O dogma da condenação ao aborto e o fundamentalismo são apontados como o principal problema para a questão não ser discutida nas igrejas. “Um dogma é algo que você deve aceitar por fé e não pode discutir, mas a condenação ao aborto não é um dogma. A Igreja Católica nem sempre colocou a defesa da vida em primeiro lugar, as Guerras Santas são um exemplo. Há incoerências histórias que mostram a condenação ao aborto como um pensamento construído”, pontua Regina.
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Priscila observa o mesmo: “Não há trechos bíblicos que explicitem o aborto como pecado, mas existe uma interpretação fundamentalista da bíblia bem inserida na nossa cultura e leitura sobre Deus. Para a maioria das pessoas religiosas, Deus não é favorável ao aborto, mas elas nem questionam ou consultam a bíblia”.
Para as mulheres da Frente Evangélica, o fundamentalismo religioso leva à uma defesa da vida de forma seletiva. “A gente vê um discurso hegemônico seletivo, que defende apenas uma vida e fecha os olhos para morte das mulheres que fazem procedimentos clandestinos de interrupção de gravidez.”
Papel da Igreja
“Nem posições favoráveis, nem contrárias deveriam estar em pauta na Igreja. O aborto deveria ser garantido por lei porque vivemos em um país laico. Não é um tema religioso", enfatiza Regina. Para ela, o papel da Igreja é acolher a mulher em qualquer circunstância, independente do aborto. "Não acolher como mulheres pecadoras, mas, sim, como alguém que tem o direito de ter a dignidade garantida em qualquer situação."
“Enquanto mulheres cristãs, entendemos o evangelho de Jesus como um evangelho de amor e acolhimento. Achamos que a Igreja deve refletir esse Cristo. Não deve apontar o dedo para a mulher, culpabilizando e chamando de assassina. Deveria acolher com palavras de amor e refletindo sobre como Jesus Cristo foi no seu tempo”, pontua a Frente Evangélica.
Além disso, Valéria acredita que seria importante uma revisão do pensamento da Igreja sobre o assunto. "Eu acho que seria extremante significativo um posicionamento menos extremista e antiquado. Toda ação tem uma consequência e não cabe a nós, religiosos, decidir se algo está certo ou errado. Apenas Deus tem o poder de nos julgar e, em algum momento, nosso acerto de contas será com ele."
“A minha fé está diretamente ligada à minha luta”
“A minha fé está diretamente ligada à minha luta. Se eu entendo que a descriminalização do aborto é uma forma de levar dignidade humana para essas mulheres, essa luta é também uma luta cristã”, afirma a Frente Evangélica. Como cristãs, lutam por uma política pública para garantir direitos e não encarceramento às mulheres. “A gente defende educação sexual para decidir, contraceptivos para prevenir e aborto legal e seguro para não morrer.”
Priscila também vê encontro entre a fé e a militância. “Enquanto evangélica, o sentido para mim está em lutar pela vida dessas mulheres que morrem abortando e acabar com a desigualdade social refletida no problema, que faz com que as maiores vítimas sejam mulheres pobres e negras”.
Nesse sentido, Regina diz que vê o debate sobre a descriminalização do aborto ganhar espaço dentro da Igreja. Ela faz um regaste histórico do grupo de participa, Católicas pelo Direito de Decidir, que atua há 26 anos no Brasil, Estados Unidos, Europa e outros países da América Latina. “Hoje você vê não só feministas, mas pessoas de diferentes categorias sociais discutindo a questão”.
Ela fala que já enxerga algumas mudanças no dia a dia das igrejas. “No âmbito da vida pastoral, é mais comum que um padre compreenda e acolha uma mulher que recorreu a ele após um aborto. Há um vazio muito grande entre o que é a prática pastoral e o que está na doutrina católica.”