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"As tarefas físicas mais simples nos ensinam a ficar neste mundo de maneira sagrada", defende o psicólogo e monge budista Jack Kornfield

Planeta

No Ocidente do tempo escasso e do materialismo opressivo, vida espiritual parece à primeira vista um assunto que só diz respeito a religiosos. Dedicar tempo à espiritualidade, pensam os leigos, é missão para algum momento no fim de semana, e com sacrifício – afinal, há prioridades como contas a pagar, obstáculos profissionais a vencer, cuidados com o lar, problemas com cônjuge e filhos…

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Organizar os itens na hora de lavar louça diminui o tempo da tarefa

Nada mais falso. A espiritualidade está presente em todos os momentos da vida. Basta abrir os olhos para descobri-la em nosso cotidiano, com todo o extraordinário potencial de desenvolvimento interior que ela nos traz.

Um exemplo poderoso disso é a narrativa da readaptação de um lama ocidental à sua terra, após três anos de retiro no Tibete. Segundo seu relato – mencionado no livro “Depois do Êxtase, Lave a Roupa Suja”, do psicólogo e monge budista Jack Kornfield –, nos cinco primeiros anos após o retorno ele penou para ligar-se à vida espiritual, pois em nosso dia a dia as pessoas “só têm sensibilidade para correr atrás das coisas”. Para manter o que aprendera e equilibrar sua mente, o lama usava um recurso surpreendente em sua simplicidade: a limpeza .

“Em silêncio, eu cantava um mantra de compaixão a cada prato que lavava, a cada chão que esfregava”, conta. “Fazia também uma prece para que todos os pisos e o coração de todos os seres à minha volta ficassem limpos, purificados e inocentes. O tempo parava como se eu fosse parte da terra que se purifica na primavera. (…) As tarefas físicas mais simples nos ensinam a ficar neste mundo de maneira sagrada.”

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À primeira vista, a ideia de lavar pratos para progredir espiritualmente parece uma grande tolice. Mas todas as tradições espirituais ressaltam a importância de sermos seres integrais – e como conseguiríamos isso ignorando o que pensamos e fazemos no cotidiano?

Todo indivisível

Conciliar espiritualidade e dia a dia não é tarefa simples em nenhum lugar do planeta. No Ocidente, o principal obstáculo é nossa cultura consumista, que impele as pessoas a buscar gratificação imediata e externa – a roupa da moda, o celular de última geração, o carro importado. Com isso, a espiritualidade fica em plano secundário, e a maior parte do tempo é vivida como se as crenças religiosas, morais ou éticas nem existissem.

Mas é impossível fugir do cotidiano . Atos como pagar contas, ir ao trabalho ou levar os filhos à escola também são espiritualmente importantes, e sem ter consciência disso não podemos evoluir. “Não dá para acertar num departamento da vida e continuar errando em outro”, afirmou Gandhi. “A vida é um todo indivisível.”

Para iniciar essa revisão do dia a dia, nada melhor do que a família. Existe lugar mais adequado do que o próprio lar para refinar a tolerância, o respeito e o despir-se de preconceitos e expectativas para ver a vida como ela é? “Se cuidarmos bem das relações com a família nesta vida, mais de 90% da nossa tarefa aqui terá sido cumprida”, dizia Martha Gallego Thomaz, falecida dirigente do Grupo Noel, instituição espírita de São Paulo.

Outro item crucial é o dinheiro, energia de troca que funciona como um excelente professor – para o mal e para o bem – no caminho espiritual. A supervalorização que o Ocidente lhe atribui conduz à ganância, à avareza, ao medo da escassez. Em seu lado positivo, porém, o dinheiro serve para disseminar prosperidade, remunera o trabalho feito com amor e, como energia, nunca deve ficar estagnado.

Entrar em contato com a espiritualidade no cotidiano exige desenvolver o que o budismo chama de atenção plena. De acordo com o escritor David Spangler, essa observação atenta e sem julgamento do que ocorre a cada instante nos leva a uma profunda consciência, que nos dá insights sobre o mundo e nós mesmos. A atenção plena nos permite reagir ao presente de modo mais espontâneo e livre.

Perspectiva ampliada

Spangler exemplifica como a atenção plena pode transmutar as atividades do dia a dia:

Pagar as contas – Preocupações e medos a esse respeito cedem espaço para um confronto com o sistema de crenças ligado ao dinheiro. Analisar essas crenças sem julgá-las enfraquece a programação mental que governa essa área e permite à pessoa optar por formas mais efetivas de agir.

Ir ao supermercado – Em vez de simples necessidade de abastecimento do lar, essa atividade passa a ser encarada como o ponto final de uma vasta rede de distribuição que liga a produção de milhares de pessoas ao seu bairro. Comprar conscientemente é também admirar-se com a abundância de mercadorias e exercitar o discernimento – selecionando, por exemplo, produtos orgânicos ou que não agridam o meio ambiente.

Educar os filhos – A tendência a impor restrições constantes à criança cede espaço para a percepção de suas facetas positivas, como solucionar problemas aparentemente além de sua capacidade ou partilhar brinquedos com os colegas sem ser instruída a isso.

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Descobrir a espiritualidade no dia a dia significa ter muito mais recursos para equilibrar-se e mudar o futuro pessoal. A vida seguirá com êxitos e fracassos, mas a mente aprende, sem entrar em desequilíbrio, a extrair lições de todas as situações.

“Em tudo que uma pessoa faz é possível criar e manter um estado de ser que reflete nosso verdadeiro destino”, observa Karlfried Graf von Dürckheim no livro “Daily Life as Spiritual Exercise”. “Quando essa possibilidade é posta em prática, o dia comum não é mais comum. Ele se torna uma aventura do espírito.”