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Praticantes do esporte falam sobre preconceito e resistência em quadras e campos que, cada vez mais, é sinônimo de autonomia e poder feminino

A paixão pelo futebol começou cedo. Por volta dos 9 anos, na quadra de areia que ficava perto de sua casa, na periferia da Cidade Industrial de Curitiba, Alex deu seus primeiros chutes. Foi lá que percebeu o poder que tinha com a bola nos pés. E foi lá também que descobriu que, se quisesse sentir isso outras vezes, precisaria se esforçar mais fora do que dentro de campo. Ao fim do dia, não foram poucas as vezes que as mães das outras crianças iam até o portão de sua casa para reclamar das brigas que se metia com os meninos da vizinhança.

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Alex jogando futebol feminino
Arquivo pessoal/Alex da Rocha Santos
Alex começou a jogar na quadra de areia de seu bairro e chegou a passar por times profissionais, como Paraná Clube e Athletico Paranaense

Essa poderia ser a história de mais um garoto de origem humilde, que teve seu primeiro contato com o futebol na infância e hoje acredita que o esporte pode transformar vidas. Mas um detalhe muda tudo. Alex é uma menina e as brigas com as outras crianças era só para ter o direito de fazer a mesma coisa que todas elas: jogar bola.

“Era como eu via para sobreviver”, conta a estudante Alex da Rocha Santos, de 20 anos, sobre as confusões que se metia. “Os meninos caçoavam de mim o tempo todo, falavam que eu era um menino. Uma vez, um deles até urinou na minha cabeça”, lembra ela, que hoje trocou o Paraná por São Paulo, e os garotos pela turma de mulheres do time de futebol feminino da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, onde estuda.

Veteranas e calouras do time de futebol feminino da FFLCH
Arquivo pessoal/Alex da Rocha Santos
Veteranas e calouras do time de futebol feminino de futsal da FFLCH, onde Alex joga atualmente

A dificuldade de Alex para conseguir praticar o esporte na infância não é um caso isolado. “Nunca dava para jogar na Educação Física, era sempre uma segregação que só os meninos podiam. Então eu me contentava em jogar no intervalo das aulas, mas depois não encontrei espaços para praticar e acabei parando”, fala a designer Nayara Perone, de 32 anos.

Embora ainda seja desigual quando comparado à modalidade masculina, hoje há mais oportunidade e, com isso, demanda, por espaços dedicados à meninas. Um exemplo é a abertura de uma turma só para elas na unidade da escolinha do Paris Saint-Germain, no Rio de Janeiro. Mas, ainda assim, não é raro encontrar garotas jogando improvisado em times masculinos por falta de opções inteiramente femininas.

A filha da advogada Leandra Souza Alberto, de 41 anos, felizmente não precisou passar por isso. A mãe conta que via a Maíra, que tem 8 anos, se empolgar ao assistir o irmão mais velho jogar, mas via que a pequena tinha vergonha de pedir para fazer aula.

“Um dia eu e meu marido perguntamos se ela queria participar da escolinha e ela disse que queria, mas tinha medo porque disseram que se ela jogasse futebol, ela iria virar um menino. Isso cortou meu coração”.

Depois de conversar com a filha e explicar que o futebol era um esporte para todos, ela procurou um lugar que tivesse um time feminino, mas não foi fácil encontrar. “Quando achamos, ela começou a se animar e contar para as colegas da escola. Logo os pais passaram a nos pedir o endereço do clube onde ela treinava para matricular suas filhas. As meninas começaram a ter peso nos times da sala e a escola entendeu o recado. Hoje eles têm o próprio time e oferecem treinos para meninas fora do horário escolar”.

‘O futebol é para todas’

Bota de onça de salto alto em cima da bola de futebol
Arquivo pessoal/Gabriela Cury
Gabriela conta que recebe diversos olhares sempre que aparece em quadra com cílios postiços ou vai para o treino de bota

O motivo que quase afastou Maíra do esporte afetou e afeta até hoje todas as mulheres entrevistadas para essa matéria. Preconceitos presentes na sociedade como o machismo e a homofobia são ainda mais latentes quando se trata de mulheres que querem ocupar espaços em que elas foram criadas a acreditarem que não são bem-vindas.

“Eu vou jogar bola de cílios, maquiada, se estou trabalhando, chego na quadra de salto fino e bota de onça e não estou nem aí. Mas toda vez que eu falo que jogo bola, as pessoas não acreditam, e duvidam que eu saiba correr ou chutar”, reclama a personal styling Gabriela Cury, de 29 anos, que faz parte de um coletivo de futebol feminino, o Oficial Passa a Bola. 

Relatos como o de Gabriela só reforçam que o estereótipo das mulheres que jogam futebol ainda é forte e preconceituoso. “Não existe um tipo de mulher que joga bola. ‘Tem que ser lésbica, novinha, magra, não pode ter unha grande’... não! O futebol é um esporte para todas”, defende.

Gabriela em quadra
Arquivo pessoal/Gabriela Cury
Gabriela começou a jogar futebol com 10 anos, mas ainda assim escuta comentários machistas quando fala que pratica o esporte

“Algo que ocorre com alguma frequência é a surpresa, principalmente por parte do público masculino, ao descobrir que uma mulher não masculinizada pratica o esporte. Existia um estereótipo de que mulheres que jogam futebol não podiam ser femininas. Uma vez que essa não é a realidade de uma parte das meninas, a descoberta causa estranheza”, relata a designer Ana Caroline Nunes, a Carol, de 29 anos, que joga no Canelitas F.C.

Segundo ela, as pessoas não deveriam ser rotuladas por suas aparências físicas e encaixadas nos esportes que lhes parece mais adequado. “O esporte existe para todos e deveria ser praticado de acordo com a afinidade de cada um”.

Nayara, que ao contrário de Gabi e Carol, não performa o que ela mesma diz que as pessoas chamam de “feminino”, também fala que o estereótipo inclui também uma mulher ignorante, que não sabe nada sobre futebol.

“Já aconteceu de eu comentar e discutir futebol e homens se surpreenderem: ‘Nossa, mas você entende mesmo’, como se fosse um fenômeno, como se não fosse o normal”.

Se organizar direitinho, todo mundo joga

Time de futebol feminino
Reprodução/Instagram @canelitasfc
Jogadoras do Canelitas FC fazem encontros semanalmente em uma quadra na Vila Madalena, em São Paulo

Para as jogadoras do Canelitas F.C., time amador da cidade de São Paulo, as mulheres sempre quiseram jogar futebol, mas nem sempre se sentiram encorajadas a isso. “As mulheres tanto querem jogar, que iniciamos com 10 meninas e hoje tivemos que abrir mais uma turma porque não estávamos conseguindo atender a todas interessadas. Isso é maravilhoso! O desafio hoje é mais relacionado a conseguir encaixar isso na nossa rotina, com o trabalho, trânsito, etc”, fala uma das porta-vozes da equipe, a arquiteta Ligia Ferreira de Araújo, de 29 anos.

“Acho que as redes sociais também ajudaram muito a gente a entrar nesse universo. Muitas de nós demoramos muito pra encontrar times amadores e lugares para jogar, o que fez a gente acreditar por muito tempo que eles nem existiam. Mas hoje percebemos como isso não é verdade: somos muitas!”

Gabriela, que joga desde os 10 anos, completa o raciocínio afirmando que sente que o futebol só vem ganhando espaço na agenda da mulher. “No meio de tanta correria, estresse e coisas que temos que fazer no dia, a gente acaba encontrando no futebol um momento para se reunir, fazer uma atividade física, se distrair, dar risada, até sentar em um bar para assistir um jogo acaba se tornando uma desculpa para se divertir com as amigas”.

Nayara também concorda que a vontade feminina de jogar sempre existiu. “A falta até de falar sobre o assunto, de ter uma noção de que existe algo, ajudou as pessoas a não começarem”. Pensando em fortalecer o cenário, ela também ajudou a criar um projeto que começou com treinos de futebol feminino para quem quer aprender e quem já sabe jogar.

Selfie das mulheres do JogaMiga
Reprodução/Instagram @jogamiga
Último treino das meninas do JogaMiga, em 2018, com Nayara à frente, de óculos de sol

A iniciativa também fez sucesso e hoje o JogaMiga tem seis times em São Paulo e um em Belém do Pará. Além disso, as fundadoras do projeto alimentam um site, com informações sobre a prática e ainda criaram uma ferramenta , o Mapa do Futebol Feminino, para que mulheres de todo o Brasil possam cadastrar seus times, facilitando a comunicação com quem queira jogar.

Mas, se por um lado as mulheres estão se organizando para conseguir ocupar cada vez mais os campos e quadras para praticar de forma amadora, quem sonha em realmente seguir carreira na área ainda pena.

Alex, que chegou a passar por times como o Club Athletico Paranaense e Paraná Clube quando mais nova, fala que veio para São Paulo com o intuito de encontrar um time que possa jogar enquanto cursa Ciências Sociais na USP, mas a ideia não deu certo.

“O time que eu encontrei foi o Taboão da Serra e lá as meninas não recebem salário. Elas são um time profissional, inclusive”, ressalta. Uma exigência da Conmebol pode colaborar para que, no futuro, a estrutura de equipes femininas seja melhor elaborada. Isso porque a partir deste ano, para participar da Libertadores, os clubes precisam ter um time de mulheres .

Mulheres do Canelitas FC
Reprodução/Instagram @canelitasfc
Mulheres do Canelitas F.C. associam o futebol feminino a empoderamento

“Não estamos nem perto do ideal, mas o futebol feminino é sinônimo de luta e empoderamento, e a busca pela igualdade de gênero”, sintetiza a advogada Paula Teodora, de 25 anos, que joga no Canelitas F.C.

Seja para se divertir ou para trabalhar, já passou da hora de acabar com velhos estigmas a respeito do esporte. O afastamento das mulheres das quadras e campos contribui para a perpetuação de um preconceito e de padrões que não favorecem em nada a figura feminina.

"O futebol tem valores muito interessantes, como superação, perseverança, lidar com adversidades, sentir a adrenalina de ganhar e fazer um gol... só com isso já é um modo de a mulher se empoderar", analisa Nayara.

As meninas do Canelitas completam o raciocínio da participante do JogaMiga adicionando elementos como resistência e feminismo como parte do futebol feminino. “Acreditamos que o simples ato de jogar bola é empoderamento, já que vivemos nessa sociedade que diz que isso não é para a gente. Isso significa entender que temos liberdade e força pra fazer o que a gente quiser, mesmo que tenha tanta gente que diga o contrário".

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