Atualmente, no Brasil, o aborto só é permitido em três circunstâncias: quando há risco à vida da mulher , a gravidez é originada de estupro ou o feto é anencéfalo. Entretanto, a Pesquisa Nacional do Aborto mostra que pelo menos 500 mil mulheres realizaram o ato ilegalmente em 2015 — um número que pode ser ainda maior, já que muitas passam por isso sozinhas.
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Por outro lado, quando um país de maioria católica como a Irlanda aprova legalização do aborto com 66,4% de votação popular, uma nova pergunta surge: é possível ser a favor das duas coisas? E mesmo que o debate entre os limites da religião e do Estado ainda seja intenso na realidade brasileira, algumas pessoas — em especial, mulheres — mostram que dá, sim, para se identificar com uma pauta do movimento feminista e seguir a própria fé.
Como diferentes religiões enxergam o aborto?
Essa é, inclusive, uma das pautas mais discutidas pelas mulheres que participam da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir, que trabalha junto à religião e ao feminismo para que as mulheres tenham liberdade para decidir sobre seus direitos individuais, sejam eles relacionados à sexualidade, maternidade ou igualdade de gênero.
A fundadora e coordenadora do projeto, Regina Jurkewicz, define o coletivo como uma "corrente de pensamento" que prevê uma liberdade de escolha, diferente da lógica religiosa de condenação e pecado, e explica que dentro do próprio catolicismo existe uma diversidade de discursos.
"Se a gente for tratar um tema dos mais delicados, como a condenação do aborto, vamos ver que isso foi explícito pela hierarquia da Igreja em 1860 de uma forma absoluta, ou seja, condenando o aborto desde o momento da concepção e em qualquer circustância."
Porém, isso é algo relativamente recente, já que por quase 20 séculos a compreensão era diferente — e ainda é algo que gera bastante dúvida. "Vida sempre é, mas há um desacordo entre os teólogos sobre o momento de surgimento de uma 'alma humana'", afirma.
Já para os cristãos evangélicos, o dilema está diretamente relacionado à como a leitura da Bíblia é feita. "É considerado que o feto já é uma vida, mesmo com semanas de formação. A reprodução é como se fosse um milagre, um mandamento de Deus, e interromper a gravidez 'barra' esse mandamento", diz a jornalista Paola Zanon.
Entretanto, ela explica que muitas pessoas usam as narrativas bíblicas para ditar suas próprias regras. "Nenhum religioso segue à risca tudo que está na Bíblia, é impossível. Cada um seleciona o que é conveniente para si, e, por isso, acredito que qualquer tentativa de colocar a mulher como submissa usando a Bíblia é hipocrisia. Deus nunca disse isso."
A gerente de comunicação Juliana Mendes* é judia e explica que também existem diversas interpretações para sua religião. "Os preceitos divinos foram dados por D’us para o povo judeu, para que homens (e, atualmente, mulheres) interpretem essas leis e as executem. Por milhares de anos apenas homens tinham contato com esses textos, porque as mulheres eram privadas disso. Se a prática dos costumes e tradições é machista, o problema não está na palavra divina, está na interpretação feita por esses homens e legitimada pela comunidade judaica."
Assim, ela explica que existem várias correntes de interpretação judaicas, como a ortodoxa fundamentalista judaica e a liberal, que é mais progressistas e têm uma leitura contemporânea e muito inclusiva das leis e tradições judaicas. Por causa disso, não há uma única resposta quando a questão é permitir ou não a interrupção da gravidez.
"O feto é considerado como uma parte do corpo da mãe, então, seguindo um dos princípios básicos do judaísmo de que a vida é sagrada e deve ser preservada acima de tudo, o aborto não é proibido se há risco à vida da mulher. Porém, o feto também é considerado uma vida em potencial", diz. Nesse caso, as divergências implicam em quais riscos devem ser considerados e até qual fase da gestação a interrupção seria permitida, por exemplo.
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Por que ser a favor da legalização?
Juliana se considera feminista e acredita na luta interseccional pela emancipação das mulheres. "A mulher ainda é subjugada na família, no trabalho, na educação, nos prazeres, na religião. As mulheres morrem por isso. A equidade é necessária porque o machismo mata mulheres todos os dias", afirma.
Da mesma forma, ela acredita que a legalização é necessária para proteger a vida da mulheres. "O aborto ser ilegal é a sentença de morte pra milhares de mulheres todos os dias, especialmente as mulheres pobres e negras. Ninguém deveria ser presa por escolher como lidar com o seu próprio corpo. Na prática, já é legalizado, mas só pra quem tem dinheiro pra fazer um procedimento seguro."
Regina complementa que o direito à escolha não é mais relacionado apenas ao movimento feminista, mas é uma questão de saúde pública. "A gente gostando ou não, as mulheres têm abortado. A gente não defende o aborto em si, mas a legalização, porque com isso o número de morte materna diminui e há mais atenção a contraceptivos, educação sexual e controle da prática abortiva. Ser tudo clandestino é pior, o número de abortos é muito grande, e em países que legalizam isso tende a diminuir."
Porém, ainda mais do que valorizar a liberdade da mulher em optar ou não por ser mãe, as mulheres do Católicas defendem que é cada vez mais necessário o acesso a métodos contraceptivos e educação sexual. “A gente não defende que o aborto seja utilizado como método contraceptivo, mas acredita que o ideal é que a mulher não chegue a ter uma gravidez indesejada.”
“A gente acredita que o aborto é direito da mulher, para que ela possa decidir e tenha toda a segurança para levar uma gestação adiante e, do mesmo jeito quando ela não pode ou não quer, para que tenha segurança no atendimento e não precise recorrer a espaços clandestinos”, diz.
Paola também acredita que essa é uma pauta essencial, principalmente com a existência da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 181, que poderá proibir todas as formas de aborto no Brasil — inclusive em casos de estupro ou quando há risco para a gestante. "Por que a vida do feto importa e a da mulher não? Por que obrigar uma mulher a gerar e criar o filho de alguém que fez talvez o maior mal da vida dela?", questiona.
"O cristianismo não é sobre imposição, é sobre livre arbítrio, e o aborto é uma pauta importante porque se trata de ter o direito sobre o próprio corpo, é uma luta. Ninguém é capaz de julgar os motivos que levam uma pessoa a querer abortar."
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Por que defender essa pauta na religião?
Na realidade, as três mulheres não acreditam que essas pautas devem ser debatidas na religião, mas em um âmbito fora dela. “O ideal seria que a religião não opinasse ou não tentasse influenciar no campo dos direitos da mulher quando projetos de lei que tocam na questão da sexualidade e da reprodução humana são apresentados. Quem tem que cuidar do exercício dos direitos é o Estado, oferecendo serviços de saúde e políticas públicas que garantam a vida das mulheres", afirma Regina.
De acordo com ela, o Católicas se vê, muitas vezes, obrigado a levantar posicionamentos que existem dentro do catolicismo e são pouco tratados por causa da atuação de grupos religiosos na política, além de ser voz de contraponto em meio à essas bancadas, formadas principalmente por católicos e evangélicos, que estão no Congresso Nacional. “O Estado é laico e é necessário dizer que temas como esse não devem ser debatido por igrejas", complementa.
Como mulher evangélica e feminista, Paola concorda que alguns assuntos não devem ser discutidos pela religião. "Reconheço que existem milhares de crenças e religiões, o Brasil é um Estado laico e essa lei está baseada em princípios cristãos. Eu acredito que o Estado não tem o direito de intervir na decisão de uma mulher ter o filho ou não, uma vez que ele não oferece a estrutura que ela precisa. Só quem tem estrutura são as famílias ricas, e sabemos que essa não é uma realidade total de nossa população."
Porém, ela não acredita que exista um embate entre religião e feminismo. "Acho que as pessoas precisam entender que ninguém é obrigado a ter o mesmo pensamento. O que é verdade para mim, pode não ser para o outro. É desnecessário criar uma 'guerra' entre feminismo e cristianismo", comenta.
Juliana complementa que as mulheres religiosas não estão imunes de passar por uma gravidez indesejada, e as mulheres religiosas, como um grupo que segue princípios sociais e coletivos, devem pensar no todo. "Nós, como judias, temos responsabilidade também com a comunidade maior. A gente não pode se fechar na nossa bolha. Precisamos lutar pra que todas as mulheres tenham segurança e para que nenhuma mulher tenha de arriscar a própria vida em uma clínica de aborto ilegal."
*Nome fictício usado para preservar a identidade da entrevistada.