"O Outro Lado do Paraíso": é normal não lembrar de abuso sexual?

Especialistas explicam que, da mesma forma que a personagem da novela, vítimas de traumas também podem "apagar" memórias dolorosas; entenda

Na novela "O Outro Lado do Paraíso", exibida pela Rede Globo, a personagem Laura (Bella Piero), estava disposta a descobrir o motivo do medo que tem de se relacionar sexualmente com o marido, Rafael (Igor Angelkorte). Assim, a jovem participou de sessões de hipnose e reviu cenas da infância, percebendo ali que sofreu abuso sexual do padrastro, Vinicius (Flávio Tolezani).

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Foto: Divulgação/TV Globo
Na novela 'O Outro Lado do Paraíso' Laura relembra os traumas e descobre abuso sexual que sofreu do padrasto

Infelizmente, casos de violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes são mais comuns do que se imagina. Dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), por exemplo, mostram que 70% das vítimas de estupro do país são menores de idade. E situações como a mostrada em " O Outro Lado do Paraíso " (quando a vítima não consegue se lembrar do trauma sofrido) é algo que realmente acontece fora da ficção. 

De acordo com Deborah Moss, neuropsicóloga e especialista em desenvolvimento humano pela USP (Universidade de São Paulo), o bloqueio das memórias e emoções por parte das vítimas de abuso está ligado à questão do inconsciente. "O bloqueio emocional é como um mecanismo de defesa da área psíquica, na qual o inconsciente oculta essas memórias como uma defesa para evitar o sofrimento, mas ele não deixa de existir". Ela explica ainda que isso não acontece só em casos como o da personagem da novela, mas em diversas experiências que são entendidas como algo negativo e, que geralmente, também envolvem violência.

Esse "esquecimento" pode acontecer principalmente durante a primeira infância, ou seja, no período que vai do nascimento até os nove anos de idade, ja que nesse espaço de tempo a criança não possui um repertório de linguagem e nem um amadurecimento físico e emocional para dar um significado ao ato, como explica Araceli Albino, psicóloga, psicanalista e Presidente do SINPESP (Sindicatos dos Psicanalistas do Estado de São Paulo). 

Segundo a especialista, o sistema neuronal, composto de neurônios e responsável pelo armazenamento de memória, registra apenas a imagem, mas não os afetos. "Os afetos são de ordem psíquica, um outro sistema constituído pelo estabelecimento de uma relação longa entre um adulto cuidador e um pequeno infante", diz. Assim, esse mecanismo de defesa divide o afeto da lembrança e faz com que o consciente perca a referência do motivo de sofrimendo dessa pessoa, fazendo-a esquecer.

Sofrimento não é esquecido de fato

Mesmo que a razão da dor seja bloqueada emocionalmente, a pessoa não consegue "apagar" o sofrimento em si. Deborah explica que ele continua na inconsciência, como se estivesse "guardado em uma caixinha". "O sofrimento passa a se manifestar de uma forma inconsciente, a pessoa não tem noção do por que tem aquele medo e essas emoções reprimidas são percebidas como um corpo estranho no organismo. Elas acabam vindo à tona de outras maneiras, como através de algum comportamento ou de manifestações psicossomáticas, ou seja, doenças", explica.

No caso de Laura, de "O Outro Lado do Paraíso", por exemplo, a moça sempre demonstrou medo de ter relações sexuais com Rafael. Além disso, enquanto estava no Rio de Janeiro para a lua de mel, ela recebeu uma tartaruga de pelúcia e, no mesmo momento, começou a chorar. Mais tarde, foi descoberto que o padrasto abusava da garota no tanque de tartarugas que ela tinha em casa. 

A neuropsicóloga afirma que é normal a vítima "travar" quando o assunto é sexo, assim como retratado na novela, e isso pode refletir de forma negativa na vida dela, mesmo que ela não compreenda a causa. "Estamos falando de um esquecimento que foi recalcado e que, enquanto não se tornar consciente e for elaborado em um processo analítico, o sujeito continuará sofrendo", comenta.

Segundo a especialista, é normal que quem sofre com esse tipo de bloqueio acabe prestando mais atenção nos sintomas do que na causa, gerando certa angústia. "A pessoa não tem o conhecimento de si mesma, ela age da forma ‘possível’ e não sabe a origem de tudo isso ou o motivo de agir dessa maneira. Isso vai trazendo consequências prejudiciais, criando uma bola de neve que ela não sabe nem de onde que veio e nem como resolver", explica.

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Buscando ajuda

Tanto em casos de abuso sexual, como em outras situações psicologicamente dolorosas, é importante buscar a ajuda de um profissional especializado. Na novela, a personagem busca ajuda com Adriana (Julia Dalavia), que estuda técnicas de "coaching" — um processo que auxilia pessoas a alcançarem objetivos concretos. Porém, tanto Araceli, quanto Deborah afirmam que não é o recomendado.

"O abuso sexual infantil é algo extremamente traumático e causa sérios danos psíquicos, além de inibições sexuais. Nesses casos, o tratamento tem que ser muito cuidadoso, é um processo complexo, de representações inconscientes profundas e é preciso um profissional capacitado e preparado para trabalhar com o psiquismo", afirma Araceli.

Assim, a profissional diz que entender o sofrimento da vítima é a melhor forma que pessoas que não são os profissionais da área psíquica têm de ajudar. Além disso, é preciso compreender que, nesses casos, a pessoa não consegue mudar sozinha, não por falta de vontade, e sim por precisar de ajuda. "A compreensão, o amparo e a orientação para que o sujeito procure uma ajuda profissional são as melhores ajudas", afirma. 

Recuperando as lembranças

Durante o desdobramento da trama na novela, muitos personagens duvidam da palavra de Laura, incluindo a mãe da moça, Lorena (Sandra Corveloni). A mulher afirma que o abuso não aconteceu e que a filha está "fantasiando" porque não teria como lembrar do ocorrido com clareza após tantos anos de "esquecimento". 

Lembranças de fato podem vir à tona com a ajuda da terapia, mas, assim como nem todas as memórias podem retornar, nem todo método de terapia tem esse resultado. "É um processo complexo. Existem lembranças que podem ser acessadas com mais facilidade por qualquer método indutivo, mas tem ideias, as do inconsciente, que nunca poderão serem lembradas", afirma Araceli. 

O que não pode ser lembrado, por outro lado, vai se manifestar em ações que podem prejudicar o bem-estar da pessoa. Nesses casos, são utilizados tratamentos como  terapias de regressão  e sessões de hipnose. A ideia é fazer com que o paciente acesse os “porões” da memória e seja capaz de deixar traumas para trás, fazendo as pazes com o passado. Entretanto, é importante lembrar que esse tipo de método só deve ser feito por profissionais que tenham conhecimento sobre o assunto e experiência na área.

Superar o trauma é um processo

De acordo com Deborah, ainda mais importante do que buscar ajuda psicológica, é que a pessoa se disponha a reviver a dor. Ela reconhece que não é algo fácil, mas afirma ser o melhor caminho. "As lembranças podem voltar na terapia e, não apenas isso, mas toda a intensidade de sentimentos e de tudo aquilo que estava bloqueado. Existem até casos de pessoas que acabam precisando de ajuda psiquiátrica junto à terapia, porque ela não tem recurso para lidar com essa intensidade".

Mas, enquanto a parte psicológica do trauma está sendo tratada com análise, entrando em contato com essas questões do inconsciente para conseguir lidar de forma mais saudável com o ocorrido, a parte física também deve ser acompanhada por um especialista. "Dependendo do caso, um tratamento interdisciplinar pode ajudar. Assim, se houver alguma questão física, como hematomas e outros machucados provenientes do abuso, é essencial procurar primeiramente um médico especialista e um profissional da área psíquica para que todos os sintomas sejam diagnosticados e resolvidos", diz a profissional. 

Por isso, é tão importante que a família dê apoio para que a pessoa busque esse tratamento e que esse apoio siga existindo durante todo o processo. "Além de todo o tratamento e toda a parte de acolhimento, é preciso mostrar para essa pessoa que ela pode encontrar afeto nas relações e que não é todo mundo que se relaciona de forma agressiva".

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Adultos também podem bloquear emoções 

É importante mencionar que casos de bloqueio emocional não acontecem apenas na infância. Mesmo que casos assim sejam mais comuns, nada impede que isso também aconteça com adultos, mas de formas diferentes do que ocorre com as crianças. 

Aracieli explica que muitos sofrimentos da vida adulta têm origem em conteúdos inconscientes, mas que esses geralmente se apresentam de forma deformada, como nos sonhos, para não serem reconhecidos pela consciência. No entanto, da mesma forma que ocorre com as crianças, aquilo que está esquecido no inconsciente não desaparece da mente e continua atuando fortemente por meio das emoções. 

De acordo com Deborah, isso acontece porque os adultos assimilam as emoções de uma forma diferente do que os pequenos. Assim, o bloqueio pode acontecer por meio de atitudes, como com a rejeição a um pedido de relacionamento ou medo de ter relações sexuais com um parceiro, como aconteceu com a personagem de "O Outro Lado do Paraíso". Em ambos os casos, o melhor caminho é buscar um tratamento psicológico com um profissional especializado e de confiança.