Em comparação com décadas passadas, a frequência com a qual a teledramaturgia brasileira tem abordado temas como relacionamentos abusivos e violência contra a mulher vem crescendo. Em 2015, a novela “Verdades Secretas”, da Rede Globo, exibiu uma cena chocante em que Larissa (uma usuária de drogas vivida por Grazi Massafera) é vítima de um estupro coletivo. Também em 2015, a novela "A Regra do Jogo" mostrou uma mulher que apanhava do marido . No ano passado, a minissérie “Justiça”, da mesma emissora, voltou a abordar a questão do estupro, trazendo a história de Débora (Luisa Arraes), jovem que faz de tudo para garantir que seu estuprador seja punido quando a polícia falha em encontrá-lo. Agora, é a vez de “O Outro Lado do Paraíso”, nova novela das 21h da Globo, que retrata mais uma vez a violência doméstica .
No primeiro capítulo de “ O Outro Lado do Paraíso ”, a novela mostra o início da história de Clara (Bianca Bin) e Gael (Sergio Guizé), um casal feliz e apaixonado. De início, o rapaz se mostra amoroso com a moça, com quem se casa ainda na primeira semana da trama. Mas não demora muito para que a história dos dois siga um rumo sombrio. Tomado pelo ciúme de um homem que Clara convidou para o casamento, Gael acaba com a festa e, após se desculpar com a moça, os dois partem para a noite de núpcias. Encantada com tudo o que o marido providenciou, tudo o que Clara não espera é o que acontece em seguida: bêbado e raivoso, Gael segura a esposa à força, rasga seu vestido e a estupra.
Após uma conversa entre os dois, em que Clara se mostra desconfortável com o que aconteceu, Gael se desculpa e promete que a situação não vai se repetir, mas, a partir daí, o casal entra em uma espiral já bastante conhecida por milhares de mulheres em todo o mundo: a de um relacionamento abusivo . Gael passa a agredir Clara fisicamente – sempre se mostrando arrependido depois – além de sinalizar problemas de alcoolismo. A moça chega a precisar de auxílio médio e, nesse momento, mais de uma pessoa tenta persuadi-la a denunciar o marido, conselhos dos quais ela desvia, pelo menos nos primeiros capítulos, afirmando que ele não era o culpado pelos ferimentos dela.
Em vez de mostrar um acontecimento pontual, a nova novela explora a construção de um relacionamento abusivo, da mesma forma que em “Mulheres Apaixonadas” – novela da Rede Globo de 2003 em que a personagem Raquel (Helena Ranaldi) passa a trama praticamente inteira fugindo das agressões do marido Marcos (Dan Stulbach). Apesar de muitas pessoas imaginarem o contrário, nem sempre o parceiro abusivo dá sinais de que é uma pessoa perigosa no início do relacionamento e, por mais que as cenas de violência choquem o público, ainda há muitas críticas a respeito da atitude de Clara em se recusar a denunciar o marido agressor, trazendo à tona a necessidade de o tema voltar a ser discutido.
Não é só violência física
O caso de Clara, que não admite sofrer violência para ninguém e não demonstra ter intenções de denunciar Gael no início, não é algo isolado. Por motivos diversos, muitas mulheres se mantêm em relacionamentos abusivos mesmo após compreenderem o quão errada é a situação, e não é difícil encontrar pessoas que usam esse fator como forma de minimizar o sofrimento da vítima e o horror da situação de forma geral. Para entender o que leva milhares de mulheres a adotarem essa postura, é preciso entender que um relacionamento abusivo não é pautado apenas pela violência física que, em muitos casos, nem está presente.
De acordo com Sarah Lopes, psicóloga do Hapvida Saúde, esse tipo de relacionamento acontece quando uma das partes passa a ser desvalorizada com frequência. “Em relacionamentos desse tipo, é comum que sempre um coordene a relação, fazendo com que o parceiro tenha receio ou mesmo medo de falar o que sente. Geralmente, o abusador frisa que o outro nunca vai encontrar alguém melhor”, afirma. Muitas vezes, ser desvalorizado pela pessoa que se ama pode se tornar a porta para a dependência emocional e para uma vulnerabilidade capaz de fazer a vítima achar que merece aquilo.
Há ainda outros comportamentos que podem ser um alerta de que o relacionamento é abusivo. Entre eles, Sarah cita a ideia de que a pessoa precisa pedir permissão para o parceiro na hora de sair, comportamento controlador e o hábito que ele tem de negar condutas abusivas (muitas vezes culpando a vítima por “instigar” as atitudes agressivas).
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Denunciar não é "mamão com açúcar"
Se os sinais de que algo não está certo são tão perceptíveis, por que tantas mulheres deixam de denunciar os parceiros? Para o psicólogo André Assunção, também da Hapvida Saúde, a mudança brusca de atitude por parte do agressor – que costumava ser apaixonante e se tornou violento – também é algo que deixa as vítimas confusas e receosas quanto a denunciar. Ele afirma que, muitas vezes, há a ilusão de que o parceiro só faz isso por não saber lidar com os próprios sentimentos, que ele a ama e vai voltar a ser o que era.
Quando há violência física, o psicólogo ressalta que o medo de as agressões piorarem também pode impedir as vítimas de denunciar os agressores. Apesar de não ser a situação de Clara e Gael, há ainda a preocupação em proteger os filhos pequenos do problema e o fato de que, ainda hoje, a falta de oportunidades e a desigualdade salarial entre mulheres e homens fazem muitas delas dependerem financeiramente dos parceiros.
O álcool não é a causa do problema
Em “O Outro Lado do Paraíso”, Gael está frequentemente embriagado e há cenas em que a agressão ocorre justamente durante a bebedeira. O abuso de substâncias também está presente na cena de estupro de “Verdades Secretas”, já que a vítima violentada era usuária de drogas e vivia na cracolândia. Em geral, existe a ideia de que homens agridem as companheiras única e exclusivamente pelo abuso de substâncias, e que o fato de uma mulher estar bêbada ou drogada a faz “merecer” a agressão, mas isso não é necessariamente verdade.
“A bebida alcoólica e o uso de drogas são potencializadores da agressão, porém o agressor não precisa estar sob efeito dessas drogas para exercer sua violência”, explica André. Além disso, pessoas embriagadas ou sob efeito de outras drogas não são capazes de consentir o ato sexual e, sendo assim, não podem ser culpadas pela violência sofrida.
O papel do ciúme
Apesar de ser comum ouvir dizer que “quem ama, tem ciúmes”, não é bem assim que um relacionamento saudável funciona e convém ficar de olho nos exageros. Conforme explica a psicóloga Maura de Albanesi, não há problema algum em querer cuidar e estar junto da pessoa amada, mas, em excesso, pode se tornar um problema. “Normalmente, o ciumento atribui a culpa da sua insegurança ao outro, dizendo: ‘eu sou ciumento porque você me provocou, porque não me disse onde estava’. Vira uma relação de cobranças, inseguranças, culpas e desconfianças”, afirma.
A televisão e o estupro “fantasiado”
Após ter as roupas rasgadas e ser jogada na cama à força durante a noite de núpcias, Clara é estuprada. A situação fica clara para o telespectador porque há alguns flashes da situação, mas, entre eles, “O Outro Lado do Paraíso” mostra cenas de Clara com o vestido de noiva debaixo d’água, lutando contra ondas e se afogando. Talvez seja por isso que, quando as pessoas se deparam com cenas mais realistas, como a vivida pela personagem Hannah Baker em “Os 13 Porquês” , elas as consideram “exagerada”.
André explica que essa representação do estupro em obras de ficção pode estar ligada à ideia de que muitas mulheres têm lembranças conturbadas das agressões sofridas, já que, às vezes, recordações traumáticas tendem a ficar um pouco nebulosas. Ainda assim, mesmo que a situação seja retratada de maneira relativamente “fantasiada” tanto em “O Outro Lado do Paraíso” quanto em outras obras, é importante lembrar que, na vida real, a dor não pode ser suavizada. “O trauma de um estupro ou agressão não são vividos como uma cena falsa no imaginário de ninguém. São realidades dolorosas e marcantes”, finaliza o psicólogo.