Fisiologicamente falando, ser mulher é nascer com uma vagina, e ser homem, com um pênis. A partir disso, um mundo cor de rosa ou azul é apresentado para as crianças. Pensando nisso, será que as diferenças entre os dois gêneros são naturais de cada um ou impostas pela sociedade?

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Nos últimos anos, o debate sobre o que é ser mulher vem crescendo a medida que as desigualdades são conhecidas
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Nos últimos anos, o debate sobre o que é ser mulher vem crescendo a medida que as desigualdades são conhecidas

De acordo com a ginecologista Bárbara Murayama, coordenadora da Clínica da Mulher do Hospital 9 de Julho, a principal característica que difere ser homem e ser mulher é o sistema reprodutor. Enquanto eles têm testículos, espermatozóides, pênis e o saco escrotal, nós temos o ovário, óvulos, útero, a vulva e a vagina.

“Mas as diferenças físicas começam a aparecer mesmo por conta da diferença hormonal e a puberdade. A mulher sofre a ação principalmente do estrogênio e da progesterona, enquanto o homem, da testosterona”, explica a especialista. Depois da menarca, que é a primeira menstruação, a menina passa a ficar com a cintura mais fina e a desenvolver os seios, além de ficar com mais pêlos pelo corpo. Já o menino fica com a voz mais grossa e ganha o bigode e a barba.

E claro, uma grande diferença entre homens e mulheres é a menstruação. “Hoje, nós podemos escolher se queremos reproduzir ou não. E a menstruação é o efeito de não reproduzir. Todo mês, a gente recebe estímulo hormonal para ovular. No meio do ciclo, o óvulo é liberado. Se ele for fecundado, a mulher pode ficar grávida. Se não, o endométrio que se formou para receber o óvulo fecundado é liberado em forma de sangue e coágulos.”

Todo o processo parece simples, mas gera também uma variação hormonal enorme na mulher. Durante a ovulação, pode ocorrer aumento da libido, enquanto no período menstrual pode ocorrer a TPM. “A oscilação de humor ao longo do mês é normal nas mulheres. Já o homem é mais estável fisiologicamente falando.”

Mas nem mesmo na fisiologia há regra para o que é ser mulher. Se pensarmos que, para ser uma pessoa do sexo feminino, uma pessoa precisa menstruar, estaremos excluindo aquelas que não menstruam todos os meses. É o caso de quem sofre com amenorréia, que pode ser primária – no caso de meninas que nunca menstruaram – ou secundária – mulheres que pararam de menstruar sem explicação.

Saindo do fator biológico, então, a discussão é ainda maior. Há aquelas que amam maquiagem, vestidos, a cor rosa e todas as coisas ditas “de menina”, enquanto outras amam jogar futebol, usam cabelo bem curtinho e nem pensam em usar batom e rímel, gostos tidos como “masculinos”. Mas será que isso é verdade? Existem coisas “de menina” e “de menino”? Será que é possível dizer o que é ser mulher? O Delas conversou com diferentes mulheres para saber a opinião de cada uma. Confira:

Juliana Rakoza, 31 anos, makeup artist e maquiadora oficial da Maybelline NY

Juliana gosta de maquiagem e de se vestir bem, mas sabe que essas questões não são só de mulher, mas de homens também
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Juliana gosta de maquiagem e de se vestir bem, mas sabe que essas questões não são só de mulher, mas de homens também

"Eu me encaixo no padrão feminino. Sou vaidosa, gosto de maquiagem, de me vestir bem, mas quando eu era mais nova, sofria preconceito. Gostava de empinar pipa e de outras brincadeiras que eram só para meninos. E eu gostava muito de brincadeira para menino.

Comecei a gostar de maquiagem por conta de uma tia que usava. Ela tinha um batom com embalagem verde, uma boca louca e usava pó de arroz. Eu adorava o cheiro da maquiagem também, que para mim tinha um cheiro de mulher fina. Comecei a usar os produtos dela. Usei canetinha roxa e preta na boca. Fiz sardas também de canetinha, sempre quis ter sarda, achava o máximo. Acho que meu amor pela maquiagem se manifestou aí, com uma brincadeira de criança. Para mim, a maquiagem é importante para você se sentir melhor com você mesma. 

Já ser feminina, na minha opinião, é você gostar de coisas que são relacionadas ao universo da mulher. Você se interessar por tratamento de cabelos, de maquiagem, cosméticos, saúde do seu corpo, físico. Mas nem todo dia a pessoa está naquele 'mood' de se maquiar, usar salto, e isso não faz dela menos feminina. O ser feminina está mais na atitude. Acredito que as pessoas tenham que priorizar as suas necessidades e não fazer algo em nome de um padrão de beleza imposto. 

Além disso, essas questões de gostar de roupa e sapato não é só da mulher, é do homem também. Mas o universo da estética acho que é mais feminino.

O que incomoda mais são os padrões de beleza, por exemplo ter a barriga trincada ou ser musa fitness. Se a pessoa realmente deseja isso, é um direito dela, mas quem não quiser, não pode ser pré-julgada por isso. As mulheres devem estar felizes com os seus corpos. A mesma coisa com a maquiagem.

E em relação se é possível definir o que é ser mulher, o que define realmente é um conjunto de comportamentos, além de ser do sexo feminino. Tem mulher que é feminina, tem mulher que não é, que tem mais interesse ou menos interesse."

Sarah Santos, 24 anos, estudante de psicologia

Estudante de psicologia Sarah acredita que a feminilidade é uma construção, que ninguém nasce feminina ou masculina
Arquivo pessoal
Estudante de psicologia Sarah acredita que a feminilidade é uma construção, que ninguém nasce feminina ou masculina

“Eu me vejo como uma mulher feminina, mas também não me cobro para seguir essa ‘ditadura de ser feminina’. Quando era pequena, brincava com os meninos na rua, sempre fiz esportes e minha matéria favorita na escola era educação física – o que já me tira um pouco do padrão que fala que menina não gosta de bola.

Sempre tive mais amigo menino e sempre joguei mais ou menos bem, então eu era aceita, ninguém me repreendia. No meu prédio, eu cresci com homem. Sempre joguei video game, brinquei de pega-pega, polícia e ladrão. Se eu tive alguma dificuldade foi que eles me vissem como alguém atraente e não como homem. Para eles, eu era homem.

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Você viu?

Os meus pais são muito vaidosos. Minha mãe sempre cobrou muito isso de mim, ela acha inadmissível sair de casa com a cara limpa. Meu pai não me cobra muito porque acha que isso é coisa de mulher, então é minha mãe que deve chamar minha atenção.

Eu acredito que a maquiagem é, sim, uma parte de mim, mas ela não me define enquanto mulher. É uma parte de mim porque eu gosto de me maquiar, me sinto bem, me acho mais bonita, então ela faz parte de mim, mas não é uma coisa que me prende, que me segura. Eu consigo muito bem ir para faculdade ou para o shopping, por exemplo, sem me maquiar – e não me sinto mal por isso.

Gosto de me maquiar quando vou para a balada, para um restaurante, quando saio com meu namorado, mas é algo simples: base, rímel, blush. Acho que faz parte de mim enquanto Sarah, mas não me determina.

Em relação a separar o que é coisa de homem e o que é coisa de mulher, eu acho de uma ignorância sem tamanha. Eu acho que não existe isso, sabe? Depois que você cresce, vai ter de fazer tudo. Eu dirijo, por exemplo. E tem homem que vai precisar ser dono de casa. E mesmo que eu seja dona de casa, vou precisar de ajuda. Se tiver um filho um dia, eu vou cuidar sozinha só por que fui eu quem brincou de boneca? E também não tem isso de que se o menino quer brincar com boneca é porque ele é gay – e mesmo se ele for, qual o problema?

Acho que a feminilidade é uma construção. Ninguém nasce feminina ou masculina. É uma imposição que acabamos aceitando e ir contra o fluxo pode ser bem difícil. Ainda assim, para mim, ser feminina é tentar ser o mais autêntica possível em todas as situações. Não na moda ou na maquiagem, mas em se posicionar mesmo, de gritar quando tem de gritar, de dar a cara para bater quando precisa. É isso: se posicionar e não deixar ninguém ser mais que você apenas porque você é mulher.

E não dá para definir o que é ser mulher. Se existe um molde, há quem não se encaixe nele. Faz o quê?"

Jessica Tauane, 26 anos, YouTuber e comunicóloga social

Algo que faz Jéssica se sentir mulher é entender que outras pessoas passam pelos mesmos problemas apenas pelo gênero
Arquivo pessoal
Algo que faz Jéssica se sentir mulher é entender que outras pessoas passam pelos mesmos problemas apenas pelo gênero

"Me acho feminina ao mesmo tempo que não acho. Acredito que é uma sacanagem essa construção de gênero. O homem ter uma construção e a mulher outra. Se você é uma menina tem de ser de uma forma, já se é homem não tem acesso à feminilidade ou sensibilidade de qualquer forma. Já eu me permito ser quem eu sou.

Mas tive problemas com isso. As pessoas esperam que uma mulher, lésbica e gorda esteja em uma posição subalterna. Esperam que eu tenha vergonha de quem eu sou, mas essa vergonha me motiva. Eu tenho orgulho de ser gorda e LGBT. Eu já tive vergonha, já fui muito preconceituosa comigo mesma, já me odiei, mas hoje em dia me acho ótima. Na verdade, isso causa um desconforto, e daí vem a revolta interna. Eu levanto a bandeira e luto. É muito interessante porque pego as coisas que vivo e levo para um ambiente maior.

Essas construções de gênero são muito violentas. As pessoas já imaginam que você têm de seguir uma coisa, e você se policia desde criança sem perceber. As pessoas seguem porque é mais fácil. O gênero é uma máscara que a gente veste desde quando a gente sai do útero da nossa mãe. Levamos com naturalidade coisas que são construídas socialmente e não nos permitimos sair desse padrão.

Ser feminina, para mim, é poder ser dona de mim, dona do meu corpo, ser lésbica. A feminilidade me permite ser a pessoa mais carinhosa do mundo e, ao mesmo, impor respeito. Me permite ser quem eu quero. Não existe regra. Ser mulher é não ter regra.

Acho que a única coisa que me faz sentir mulher é conversar com outras mulheres que passam pelas mesmas coisas que eu. Eu sempre fui a Jéssica, mas falando com outras mulheres eu me reconheci no grupo político das mulheres. Estamos dentro de uma sociedade patriarcal, e a sororidade me faz mulher. Só me reconheço nas outras, e por isso sou tão unida nas outras pautas, de mulheres negras e trans também."

Edvangela Carolino Neves, 22 anos,  estudante de gestão ambiental

Edvangela conta que já chegou a ser confundida com um homem gay, principalmente quando o local é voltado para mulheres
Arquivo pessoal
Edvangela conta que já chegou a ser confundida com um homem gay, principalmente quando o local é voltado para mulheres

"Percebi que não me encaixava no padrão ainda criança. Não gostava de brinquedos ditos como femininos, mas o marco principal foi durante a minha adolescência. Não usava maquiagem, não era feminilizada, percebi que tinha dificuldade para ter amizades e sempre nomeada como a garota mais feia da classe. Me senti isolada durante a minha fase escolar.

Na nossa sociedade é difícil viver livre de opressão e discriminação, ainda mais sendo mulher, lésbica e negra. Se tratando da minha vivência pessoal, as consequências se iniciaram ainda na minha infância, com o racismo e o machismo. O racismo destrói a autoestima de mulheres negras. Porém, minha maior dificuldade até hoje foi lidar com a violência policial, lidar com os estereótipos destinados a mim. Sendo uma mulher negra e não feminilizada, recebo inúmeros adjetivos pejorativos que não condizem com o que eu sou. Um exemplo disso é ouvir que eu não tenho 'cara de aluna da universidade'.

Como já mencionei, também sofro agressões por ser lésbica. Geralmente sou confundida com homens gays, principalmente em locais exclusivamente femininos como banheiros públicos. Quando noto que não foi intencional não me sinto mal, mas infelizmente já aconteceu de ser agredida verbalmente na rua com xingamentos pejorativos.

Acredito que a feminilidade é imposta a todas nós desde criança e vejo como uma forma de opressão pelo machismo, por determinar um padrão a ser seguido. O capitalismo também lucra com isso, com a venda de cosméticos, cirurgias plásticas, tudo que se enquadra no padrão ideal de beleza. 

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Já dizia Naomi Wolf em 'O mito da beleza': 'O mito da beleza tem uma história a contar. A qualidade chamada ‘beleza’ existe de forma objetiva e universal. As mulheres devem querer encarná-la, e os homens devem querer possuir mulheres que a encarnem. Encarnar a beleza é uma obrigação para as mulheres, não para os homens, situação esta necessária e natural por ser biológica, sexual e evolutiva.'

Impondo padrões para as crianças seguirem impedimos o seu desenvolvimento, pois elas não terão a liberdade de serem elas mesmas, de ser mulher ou homem que querem. Além disso, essa distinção através de brinquedos e cores que a sociedade faz entre meninos e meninas serve para a manutenção da sociedade patriarcal e machista, pois, ao crescerem, as mulheres devem cuidar da casa e das crianças, e os homens, trabalhar e comprar as coisas para manter a casa."

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