É praticamente oficial: os Estados Unidos terão a primeira mulher da história concorrendo à Presidência por um partido grande, e ela será Hillary Clinton.
O fato ocupou manchetes mundo a fora e surpreendeu os brasileiros, tão acostumados a nomes como Dilma Rousseff, Marina Silva ou Heloísa Helena ─ e mais ainda àqueles que costumam olhar para o primo do norte como exemplo de modernidade em diversos setores. Até imagino alguns desses criticando com veemência o que chamam de "atraso do Brasil em relação aos EUA" no episódio do anúncio do ministério machista de Michel Temer.
Permita-me aumentar ainda mais seu assombro: ser mulher nos Estados Unidos, onde vivo, em muitos sentidos, não é melhor do que ser mulher no Brasil.
"Choque"
Morei aqui pela primeira vez em 2009, quando tinha 23 anos e vim aprender inglês e viver com uma família americana de quem fui babá por um ano.
Foi na fila de um consultório que eu descobri que os americanos me enxergavam de maneira bem diferente. A mocinha da recepção perguntava meus dados. "Idade, estado civil, raça?". Quando disse "branca", ela não segurou o riso. "Não entendi, eu não sou branca?". E ela, com jeitinho, me explicou: "Não, você é latina."
Isso explica muito. Quando levo meu cachorro a um parque no bairro em que moro, algumas pessoas me perguntam se eu sou a cuidadora dele ─ não faz sentido para alguns americanos brancos que alguém como eu more num lugar bom da cidade. Quando digo que sou brasileira, alguns homens se sentem no direito de me tocar, algo que não se atrevem a fazer com as brancas. Eu nunca tinha experimentado a vida de ser mulher e membro de uma minoria racial até chegar aos EUA.
Semelhanças
Claro, enquanto mulher, também compartilho dificuldades com as americanas brancas. Mary (nome fictício), por exemplo, a mãe da linda menina de quem eu era babá, havia dado à luz fazia poucos meses quando eu cheguei. Ela sofria bastante pressão para voltar imediatamente ao trabalho. É que os EUA são o único país do mundo desenvolvido onde mulheres não têm direito à licença maternidade remunerada.
Mary era um furacão: falava uma série de idiomas (incluindo russo!), era formada por uma das melhores universidades do país e era executiva de um grande banco. Em suma, ela não tinha que provar nada a ninguém. Mesmo assim, toda aquela tensão a derrubou e ela caiu em depressão.
Vamos pular no tempo um pouquinho quando, aos 30 anos, jornalista e casada, eu volto a morar nos EUA e decido participar de algumas reuniões de um grupo feminista na capital, Washington. Eu era a única estrangeira em uma roda em que todas éramos convidadas a falar sobre as dificuldades de ser mulher. Nenhuma delas falou de licença maternidade.
Mas o que mais me surpreendeu é que, quando eu defendi a política, algumas delas se opuseram, dizendo que tinham medo de que a licença maternidade se tornasse uma desvantagem para as mulheres no mercado de trabalho. Ou seja: o sistema econômico americano não está disposto a flexibilizar algumas regras nem mesmo para garantir que a força de trabalho do futuro possa ser alimentada adequadamente.
E sabe quem também paga os custos sociais da inexistência da licença maternidade nos EUA? As mulheres imigrantes que precisam deixar seus filhos sozinhos ou com os avós, às vezes em outro país, para poder sustentá-los enquanto cuidam dos bebês das mulheres da classe média americana.
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Cantadas
Sinto que as mulheres aqui recebem menos cantadas indesejadas na rua do que no Brasil. Mas também há muitos casos de estupro por aqui, e tenho medo ao andar à noite em zonas afastadas.
Segundo o RAINN, maior instituto de estudo e prevenção de estupro dos EUA, aqui ocorre um estupro a cada dois minutos. No Brasil, com população 37% menor que a americana, há 1 estupro a cada 11 minutos, segundo o 9º Anuário Brasileiro da Segurança Pública.
Claro, há quesitos em que os EUA levam vantagem: por aqui, o feminismo é mais popular e a cantora Beyoncé é uma força sem paralelo na sociedade americana.
Ela está nas capas de revistas gritando que merecemos direitos iguais e, na minha escola de dança, é presença garantida em coreografias e letras que fortalecem nossa autoestima. Mulheres americanas ganham 21% a menos que os homens ─ no Brasil, 30% a menos ─ e elas ocupam 19,4% dos assentos no Congresso - no Brasil, são 10%.
Mas, se me perguntarem o que estou achando de ser mulher nos EUA, eu digo: está mais ou menos igual. Será que é porque ser minoria me colocou mais posições atrás nessa escala social? Espero que, se chegar à Casa Branca, Hillary ajude a mudar o jogo. E que a cor de sua pele não a deixe esquecer que nós, latinas e negras, também precisamos de atenção.
* Nana Queiroz é diretora executiva da Revista AzMina (Facebook.com/revistaazmina), autora do livro "Presos Que Menstruam" e roteirista da série de mesmo nome em produção. Também é criadora do protesto "Eu Não Mereço Ser Estuprada". É jornalista pela USP e especialista em Relações Internacionais pela UnB.