Soube durante um almoço em família. Eu tinha pouco mais de 30 anos na época. A revelação, como quase tudo que acontecia lá em casa, foi feita sem cerimônia nem lamentos. Foi uma resposta a uma pergunta e a partir dela eu e meus irmãos soubemos que poderíamos ter um quarto irmão, mais velho do que nós, gerado quando papai tinha 17 anos e trabalhava em troca de comida e lugar para dormir em uma fazenda de café no interior de São Paulo.
Mais do que o irmão desconhecido, a grande novidade para mim foi mesmo a história do trabalho análogo à escravidão narrada por papai naquele almoço de domingo. Como eu, uma jornalista, não soube disso antes? Seu João (meu pai) sempre foi mulherengo e teve durante o casamento com mamãe muitas amantes. Com uma delas, por quem pôs um ponto final na união de quase 30 anos que nos gerou, teve um quinto filho, esse registrado e com quem temos contato esporádico.
Por isso, escrevo hoje sobre João, José e trabalho escravo.
Papai e tio José, respectivamente, dois garotos de 15 e 13 anos, pegaram juntos carona em um pau de arara, o tipo de caminhão que transporta pessoas, agregados a uma família de vizinhos com destino ao “Sul Maravilha” – como era tratada toda e qualquer cidade geograficamente localizada abaixo do Nordeste.
Meus avós autorizaram a viagem. Ficariam na Paraíba, onde trabalhavam como meeiros em um pedaço de terra, e seguiriam o rastro dos dois garotos com os outros nove filhos mais para frente.
Em 1946, João e José, como tantos outros milhões de nordestinos, subiram no caminhão velho e percorreram cerca de 2,6 mil quilômetros de estradas de terra até chegar à capital paulista. Na estação Júlio Prestes, ao descer do caminhão que os transportara durante mais de 25 dias, foram selecionados como mão de obra barata para fazendas de café no interior do estado. Os fazendeiros os esperavam e de lá partiram para mais uma viagem.
Passados quase 80 anos que papai e tio José foram levados por fazendeiros para trabalhar em condições desumanas em alguma fazenda deste Brasil gigante e desigual, a história se repete e se revela nos dias de hoje, século XXI, tempo em que redes sociais e robôs contrastam com miséria, desemprego e fome.
Ações conjuntas de Auditores do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e agentes de segurança livraram no período de um mês mais de quatro centenas de seres humanos vivendo em condições desumanas, alguns submetidos a agressões com choques elétricos e spray de pimenta, sem água, sem luz, dormindo diretamente no chão e com o valor em troca do trabalho desaparecendo a cada saco de arroz e feijão comprados na birosca instalada perto do local onde passavam a noite. Esses brasileiros perdem parte ou todo o dinheiro acertado como remuneração pelo trabalho na colheita de uvas, arroz e trigo em grandes propriedades agrícolas comprando alimentos a preços exorbitantes, sem outra opção. O vale descontado do salário combinado os mantinha privados de liberdade para ir embora, ameaçados por capatazes e gente armada.
Mesmo por caminhos tortos, papai teve mais sorte do que a maioria destas pessoas vítimas da chamada escravidão contemporânea.
Deve haver centenas de milhares de seres humanos sobrevivendo assim no meio rural e em cidades do Brasil. Papai e tio José fugiram da fazenda em 1948. Parece que a mulher que seu João engravidou era esposa do capataz da propriedade. Nunca consegui checar essa parte da história com ele. Seu João morreu em 2012 e tio José, no ano passado.
Ao fugir, os dois irmãos paraibanos chegaram a São Paulo. A família que tinha ficado no Nordeste já estava morando na cidade. Tempos depois, mudaram para Goiás, papai voltou para São Paulo, casou com mamãe, a deixou na Paraíba por dois anos e partiu rumo a Rondônia em busca de trabalho. No caminho parou em Brasília, ainda bem no comecinho da cidade, conseguiu emprego e levou mulher e filhos para morar em um barraco na cidade satélite de Taguatinga. Nasci um ano depois do reencontro. Como um eldorado cheio de oportunidades, Brasília deu a papai e a todos nós, seus descendentes, condições de subir na vida. Já milhões de brasileiros seguem em busca de oportunidades, respeito e dignidade.