Aquele sábado de julho de 2007 não seria um dia qualquer para Giulia Dias . A curitibana, então com 9 anos, acordou radiante. Em poucas horas, realizaria o sonho de sua vida: morar em Florianópolis.
O caminhão de mudança atrasou e a menina e os dois irmãos — ela é a filha do meio de um casal de empresários — partiram com a avó paterna. “Fomos na frente para adiantar as coisas. Vovó daria banho em todos nós e estaríamos prontos quando meus pais chegassem”, conta a moça. “Minha última lembrança foi de me despedir de papai e mamãe. Caí no sono e nem vi quando ocorreu a colisão que me deixou marcas para sempre.”
Dessa tarde, Giulia tem apenas flashes. “Eu me recordo de despertar em algum momento e estar rodeada de gente... Já no hospital, precisei ser muito corajosa. Vovó não conseguia falar, minha irmã mais velha estava em choque, meu irmão era bebê demais... Então, coube a mim passar o telefone de uma tia para os médicos informarem o que havia acabado de acontecer.”
Na sequência, a menina precisou ficar 15 dias na UTI em coma induzido e quase um mês no quarto de um hospital em Joinville, município de Santa Catarina. “Não fiquei assustada nem chorei ao me ver no espelho pela primeira vez. Não expressei qualquer tipo de reação. Era assim que teria de viver, com uma cicatriz no rosto e duas na barriga. No novo colégio, em Florianópolis, algumas crianças tiveram dificuldade em me aceitar. Mas nunca deixei que isso me abalasse. Era uma menina determinada e sabia exatamente quem eu era. Por fim, superamos nossas questões e nos tornamos amigas.”
A adolescência, ela conta, foi o período mais conturbado. “Normalmente, nessa fase não estamos satisfeitos com nada, e pode ser pior quando se tem cicatrizes. Há muitas exigências internas e externas, é um turbilhão de emoções, uma pressão estética para uma possível sexualidade aceitável, como diria (a escritora americana) Naomi Wolf. Então, eu ficava nessa dualidade de ‘sou bonita com todas minhas marcas’ e, ao mesmo tempo, ‘como posso ser atraente se tenho um corte no rosto’. Com o tempo, fui percebendo que as coisas não são assim tão extremas, podemos ter cicatrizes e sermos lindas, atraentes e inteligentes”, diz. “Lembro-me de falar para as minhas amigas: ‘se você não se amar ninguém vai fazer isso por você’. Isso sempre ajudou a melhorar minha autoestima.”
Tamanha lucidez, a curitibana afirma, não é fruto de terapia, mas do apoio da família. “Ao percebermos que o mundo poderia ser cruel, nos fechamos. Meus pais são a base de tudo”, comenta a modelo . “Meu namorado, o ator Eduardo Pinter, é outra pessoa importante. Ele dá suporte para minhas maluquices. Inclusive, todas as vezes que o Eduardo tinha um teste, me incentiva a acompanhá-lo e tentar. Mas, novamente, eu achava que não me aceitariam da forma que sou. O mundo, no entanto, dá voltas e cá estou eu: virei modelo, aos 22 anos. Um ano atrás, não me imaginaria ocupando esse espaço. Meninas como eu simplesmente não estampavam capas de revista.”
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Nova aposta da indústria da moda, a new face chega para quebrar velhos padrões — que alguns insistem em perpetuar — e mostrar que a beleza não é uma via de mão única. “Nunca duvidei da minha capacidade, mas não me enxergava nesse lugar por causa da minha cicatriz no rosto”, observa Giulia, que costuma dizer que as marcas que carrega estão ali para lembrá-la de suas força e resiliência. “Claro que bate uma insegurança de vez em quando. Mas resolvi lidar com essa questão com positividade. Escolhi seguir adiante do jeito que a vida se apresentava.”
Revelada em abril, logo no começo da quarentena, por Andréa Damiani, dona da agência A.D. Models, Giulia fez uma grande transformação no visual. Raspou os cabelos com a ajuda do namorado e os descoloriu. “Antes do distanciamento social, minha rotina era bastante agitada. Ficava fora de casa o dia inteiro. Tinha aulas na faculdade de Relações Internacionais pela manhã e estudava Secretariado Executivo à noite. Com a pandemia, adotamos o ensino à distância. Entediada, decidi mudar o look”, diverte-se.
Nacionalmente, a curitibana é representada pela Way Model — a agência que cuida das carreiras de gigantes como Carol Trentini, Candice Swanepoel, Marlon Teixeira e Alessandra Ambrosio. “O mercado tem quebrado muitos padrões. É um momento de renovação. Precisamos mostrar toda a diversidade que existe nesse mundão”, analisa Anderson Baumgartner, responsável por direcionar a moça na indústria. “Ela é uma mulher lindíssima, uma beleza incrivelmente forte.”
Baumgartner acredita que a garota tem o que é necessário para triunfar: “A perspectiva é que meninas como ela conquistem cada vez mais espaço na moda. Giulia é promissora, pode chegar em qualquer lugar. Estará em campanhas de roupa, acessórios, lingerie, passarelas, vivendo em Nova York. O céu é o limite.” O agente cita o exemplo da top canadense Winnie Harlow, portadora de vitiligo que ganhou notoriedade a partir da metade da década, estrelando capas de revista e desfiles. “Há realmente um movimento de humanizar a moda no mundo inteiro.”
A presença de Giulia no métier é significativa, segundo a consultora de moda Manu Carvalho. “Tudo que começamos a plantar na virada do milênio está se consolidando agora. Essa mentalidade da era digital promove coletividade, compartilhamento, senso de comunidade. Pessoas diferentes sempre existiram, mas elas não se conectavam como hoje para trocar ideias e experiências... Essa é uma revolução on-line”, explica a consultora de moda.
De acordo com Giulia, desde que sua história ganhou a internet, dezenas de meninas entraram em contato para falar de suas marcas — nem todas expostas. “Criamos uma corrente virtual linda! Não paro de receber mensagens. Uma mãe me escreveu para contar que sua filha sofreu acidente quando tinha apenas 5 anos. O rosto da menina ficou com uma cicatriz parecida com a minha. Hoje, ela tem 15 e luta para superar o preconceito e os comentários maldosos. Essa moça sonha ser modelo, mas acredita que não há espaço para ela. Essa mãe mostrou minha história para a filha e me agradeceu por ser uma inspiração.”
Uma outra seguidora também dividiu a história do filho com a new face. “O menino foi mordido pela cachorra da família e ganhou uma cicatriz no rosto. Ele ficou muito feliz em saber que alguém com uma marca ‘igual’ a dele tinha virado modelo, que isso não era um empecilho para chegarmos aonde quisermos.”
No meio, a curitibana tem como referência Kendall Jenner, as irmãs Bella e Gigi Hadid e a supermodelo gaúcha Gisele Bündchen. “Gisele é uma mulher muito empoderada. É um exemplo profissional e humano. Ela coloca em pauta nossa relação com a natureza, tema urgente e necessário”, elogia a loura, que não esconde seu desejo de trabalhar para Chanel, Versace, Dior, Saint Laurent, Prada, Dolce & Gabbana... “Mas tenho uma identificação especial com a Gucci. Sempre olho para o que a grife está fazendo para me inspirar. É realmente uma grande referência.”
Ao fim da nossa conversa, Giulia para um segundo, respira e conclui: “Nossas marcas, sejam quais forem, nos lembram do real propósito da vida. O meu é incentivar o maior número de pessoas e ajudar a construir um mundo melhor. Eu me aceito do jeito que sou, com minhas cicatrizes e todo o resto.” Isso é história.