Por que há mulheres que não se libertam de relações abusivas
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Por que há mulheres que não se libertam de relações abusivas

Encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, junto ao Instituto Datafolha, a quarta edição da pesquisa ‘Visível e Invisível’ mostrou que 27,6 milhões de brasileiras (com 16 anos ou mais) relataram que foram vítimas de violência provocadas por parceiro íntimo ao longo dos anos, enquanto 18,6 milhões afirmaram ter sofrido algum tipo de violência ou agressão.

De acordo com Claudia Petry, pedagoga com especialização em Sexologia Clínica e especialista em Educação para a Sexualidade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/SC); um dos gatilhos dessa problemática é o relacionamento abusivo.

“Trata-se de um padrão ainda exaustivamente estudado, já que existe uma série de contextos por trás deste comportamento. Afinal, nenhuma mulher escolhe viver uma relação destrutiva”, pontua Claudia, que também é membro da SBRASH (Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana) e professora no Instituto de Parapsicologia e Ciências Mentais de Joinville (SC).

Como identificar que a relação mudou seu rumo: segundo Bárbara Bastos, sexóloga clínica e educacional pela FASEX, em uma relação saudável, ambos nutrem afeto, respeito, confiança, admiração, empatia, tolerância diante de divergências e, acima de tudo, uma comunicação eficaz e assertiva.

“Já o relacionamento abusivo desvaloriza aspectos fundamentais como autoestima, amor-próprio, equilíbrio emocional e autoconhecimento, além de manter um vínculo totalmente nocivo”, diz Bárbara, pós-graduanda em Sexualidade Humana pelo Child Behavior Institute of Miami (Estados Unidos).

A psicóloga Monica Machado, fundadora da Clínica Ame.C e pós-graduada em Psicanálise e Saúde Mental pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein; explica que a mudança pode começar de maneira sutil, como uma crítica a um comportamento, a maneira da mulher se vestir, e vai piorando aos poucos, quando o parceiro demonstra claramente que está controlando e perseguindo a mulher, com a pretensão de coagi-la e torna-la submissa a ele.

“Esse tipo de relação resulta também na humilhação em público. Exemplo disso é a postura de reprovação do homem quando a mulher expressa suas ideias durante um encontro entre amigos ou familiares. Ao notar que o outro não gostou, a pessoa se sente intimidada, envergonhada, acaba se calando e ficando apática. Pior: com medo de desagradar, ela insiste em querer justificar a todos o comportamento do outro”.

Para a psiquiatra Danielle H. Admoni, supervisora na residência da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/EPM) e especialista pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria); neste tipo de relacionamento, crenças relacionadas à insegurança e sentimento de inferioridade podem nutrir uma percepção distorcida da relação, havendo uma excessiva idealização do parceiro, inclusive achando que ele irá mudar.

Segundo ela, muitas vezes, não é fácil perceber que o relacionamento está se transformando, já que o abusador costuma usar discursos como “faço isso porque me preocupo com você”, ou “estou cuidando do seu bem-estar e da sua segurança”. Todo este comportamento pode ser erroneamente percebido como amor.

“A pessoa acaba exercendo poder sobre a outra, limitando a sua liberdade, humilhando, denegrindo, impondo sua forma de pensar e ser, de modo que ela acaba perdendo parte de sua identidade. Quando chega a esse ponto de sofrimento psíquico e físico, é hora de rever a relação”, reflete Danielle Admoni.

Comodismo ou medo? Além de questões individuais da mulher, como insegurança, sentimento de inferioridade e necessidade de estar com alguém, muitos fatores contribuem para que ela permaneça em um relacionamento abusivo.

“Algumas tendem a acreditar que não encontrarão outra pessoa. Há também pressões familiares ou sociais, dependência emocional, dependência financeira, medo de se expor e até culpa, pois, muitas vezes, o agressor a responsabiliza pelo comportamento manifestado por ele”, afirma Bárbara Bastos.

Quem passa por esses abusos, “finge” já ter se acostumado, e prefere continuar do jeito que está do que enfrentar os desafios que virão pela frente.

“Essa acomodação pode estar relacionada à própria personalidade da pessoa, alguém que frequentemente se sente frágil e, mesmo sendo abusada, se sente protegida pelo outro. Daí, cria-se uma relação simbiótica, na qual um depende emocionalmente do outro, formalizando um processo de desrespeito e submissão, que é alimentado continuamente”, explica Claudia Petry.

Quando é o momento de pedir ajuda: segundo a pesquisa Datafolha/FBSP, 72,4% das mulheres sentem necessidade de consultar um especialista em saúde mental, enquanto 69,4% consideram buscar suporte legal e serviços que a orientem.

“Quando chega a extremos de agressão verbal e/ou física, a situação passa a demandar uma mudança comportamental urgente, a começar pela busca de um tratamento que visa a ruptura da relação simbiótica e a busca de equidade e equilíbrio. Para isso, é preciso primeiro reconhecer que é parte de uma relação de abuso”, orienta Petry.

Já a psicóloga Monica Machado alerta que, a partir do momento em que a mulher consegue ter consciência da sua realidade e que precisa se libertar da visão que tem sobre amor e respeito, fica mais fácil trabalhar essa distorção em terapia, conseguindo resgatar sua integridade física, moral e psicológica.

“Uma vez fora da relação abusiva, é importante que a mulher se fortaleça, desenvolva autoconhecimento e saiba reconhecer o que define amor”, complementa a host do podcast Ame.Cast.

A psiquiatra reforça que, em caso de violência física e/ou psicológica, é imprescindível conversar com alguém de confiança e procurar ajuda profissional imediatamente.

“Muitas mulheres se sentem envergonhadas e preferem se calar. No entanto, essa ferida pode gerar um trauma e levar a transtornos mentais graves. Guardar para si é alimentar a continuidade da situação, e não pensar que alguém próxima também pode ser vítima algum dia”, finaliza Danielle Admoni.

Dicas para identificar um relacionamento tóxico

Os relacionamentos tóxicos são formados por um ciclo que precisa ser reconhecido e interrompido. De acordo com Alexandre Valverde, psiquiatra, neurodivergente e fundador da plataforma SOFCA - Survivors of Child Abuse & Neglected, esse ciclo se dá em fases, começando pelo 'Bombardeio de Amor', onde o abusador cria um enredo de entusiasmo, proximidade, sedução e conquista, alçando a experiência de convívio ao limite superior do que poderia ser essa relação, seja ela conjugal, de amizade, trabalho ou parental.

A próxima fase é o 'Gaslighting', um ataque à autoconfiança da vítima, levando-a a duvidar de sua sanidade. "Você está louca!”, "que exagero, não foi isso o que eu disse", “estava só brincando. Você leva tudo a sério”, “deixa de drama!”. Essas e outras frases são o arsenal com que o abusador vai minando, dia a dia, a moral da pessoa, a ponto de ela duvidar de si mesma. Valverde destaca que pessoas neurodivergentes são especialmente vulneráveis a esses abusos devido à dificuldade em entender nuances sociais.

“Os abusadores geralmente escolhem indivíduos potentes para parasitar, reduzindo-os a meros provedores de suas necessidades”, explica. O ciclo de abuso persiste até que a vítima se esgote, podendo levar ao 'Descarte', onde o abusador pode culpar a vítima. “Esse descarte pode se dar como Descarte Reverso, em que, após uma fase de abusos e desvalorização intensos e frequentes, a pessoa abusada acaba por decidir pôr fim à relação, porém, desse modo, oferecendo material para que o abusador possa se vitimizar e dizer que foi descartado pela pessoa abusada”. O Instituto Maria da Penha aponta que cerca de 70% das mulheres que sofrem violência doméstica no Brasil enfrentam também violência psicológica.

E por fim a Repescagem, momento em que os abusadores apostam na capacidade de resiliência e ansiedade de separação da pessoa abusada e jogam a isca da falsa mea culpa: “Agora eu amadureci”, “tudo vai ser diferente”, “foi só um deslize”, “você me ensinou a mudar”. Valverde enfatiza a importância de reconhecer esses padrões e buscar apoio para sair dessas relações. Confira quatro dicas do psiquiatra:

1. Se você reconhece alguma das fases desse ciclo, continue seus esforços para deixar cada uma dessas fases cada vez mais claras para você. Junte forças, íntimas de suas redes de apoio, além de preparação financeira, pois será necessário se fortalecer para atingir a autonomia.

2. Se você puder, termine essa relação. Não há saúde e harmonia no convívio com uma pessoa abusadora. Se não puder exercer o contato zero com essa pessoa, mantenha a atitude da pedra cinza. Não aprofunde essa relação (don’t deep em inglês: não se Defenda, não se Engaje, não se Explique, não Personifique). Tudo o que disser será usado como munição contra você. Não personifique significa reconhecer que esses ataques e esse parasitismo poderia estar acontecendo com qualquer outra vítima. Você só foi a da vez.

3. Se você está tomando medicamentos psiquiátricos para aguentar essa relação (afetiva ou de trabalho), repense seu tratamento com os profissionais que lhe acompanham. Procure ajuda de saúde mental e jurídica, caso não tenha ainda iniciado esse percurso.

4. Procure se informar sobre as neurodivergências e se seu modo de se relacionar se enquadra nos modos de funcionamento das pessoas neurodivergentes. Será uma ótima oportunidade para se reconhecer ao mesmo tempo em que reconhece os padrões de uma relação que pode estar minando sua vitalidade e vivacidade.

Para denunciar e/ou pedir ajuda, ligue para a Central de Atendimento à Mulher no 180 ou chame pelo WhatsApp no (61) 99610-0180.

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