Tudo pode começar como um abuso disfarçado de afeto e preocupação: “Se você deixar de ir à aula, podemos ficar mais tempo juntos”; “Vou te amar mais se você emagrecer, sabia?”; “Não sou ciumento, mas o que vão pensar de você se for vista conversando com um amigo?”; “Melhor trocar essa roupa, vão ficar te olhando na rua”. É muito difícil identificar que estamos em um relacionamento abusivo porque essas situações acabam se tornando “comuns” e você pode passar a não perceber que está sendo controlada.
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Muitas mulheres passam por isso e só percebem que estavam em um relacionamento abusivo quando conseguem colocar um ponto final na relação. A estudante universitária Amanda*, de 24 anos, deixou de comemorar aniversários de amigos, de viajar e de ir a shows das suas bandas favoritas porque o ex-namorado queria controlar as pessoas com quem ela poderia conviver, os lugares onde poderia frequentar e até as postagens que deveria fazer nas redes sociais. “Deixei de fazer coisas que eu adorava por ele.”
Durante os cinco anos de relacionamento, Amanda passou por diversas situações complicadas devido ao controle excessivo do rapaz. “Um dia, postei uma foto com um vestido que tinha uma fenda na perna. Ele disse que estava muito sexy, ficou irritado e não falou direito comigo até eu excluir a publicação”, conta. Mas a principal cobrança era em torno dos amigos. “Ele costumava perguntar por que eu ainda falava com pessoas que ele já tinha pedido pra eu parar de conversar.”
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Fora isso, o ex-namorado de Amanda não sabia respeitar a privacidade dela. “Ele sempre queria mexer meu celular para ver com quem eu conversava e bloqueava pessoas que ele não gostava”, conta, e lembra que também existia uma cobrança frequente sobre como as fotos do casal eram publicadas nas redes sociais.
“Se eu demorava para postar algo ou se publicava apenas em uma das minhas redes sociais, ele falava que parecia que eu queria esconder de algumas pessoas que tinha um namorado”, diz Amanda. “Uma vez, fiz uma declaração para ele em apenas uma rede, ele me ligou agradecendo, mas disse que tinha ficado chateado porque eu só tinha postado em um lugar”, acrescenta.
Quais os tipo de abuso?
Patrícia Cavalari Nardi, psicóloga clínica e especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental, explica que um relacionamento abusivo acontece quando existe um padrão de comportamentos destrutivos e violentos que são usados para exercer controle sobre a vida do outro, tirando a liberdade e a individualidade da pessoa. Segundo a especialista, as formas mais frequentes de violência são:
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Violência psicológica
, na qual a pessoa é humilhada, sofre xingamentos, é vítima de ciúmes e controle, tem sua sanidade mental questionada, é afastada do convívio de outras pessoas, é humilhada e perseguida;
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Violência moral
, em que a pessoa é exposta online e off-line, sofre calunia e difamação;
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Violência física
, em que a pessoa pode ser empurrada, receber tapas, socos, chutes, ser agredida com objetos, incluindo armas de fogo;
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Violência sexual
, em que a pessoa pode ser obrigada a ter práticas sexuais que não consente e/ou não gosta, é pressionada para fazer sexo, o parceiro se recusa a usar preservativo e/ou proíbe métodos contraceptivos;
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Violência patrimonial
, talvez a menos conhecida, mas é muito importante saber que existe. O agressor tem controle sobre o dinheiro da vítima, não autoriza determinadas compras, destrói objetos da vítima, vende objetos sem autorização, não autoriza que a pessoa trabalhe ou tenha renda própria, e isso torna ainda mais difícil para a vítima terminar o relacionamento.
Ciclo vicioso
O grande problema é que muitas vezes é difícil identificar que você está sofrendo com um relacionamento abusivo, pois essa situação entra em um ciclo vicioso. A psicóloga explica que esse ciclo pressupõe três fases:
- O estresse
, no qual o agressor faz acusações e desrespeita a vítima, desqualifica suas escolhas e gostos individuais e a vítima vive tentando evitar a “explosão” de raiva do agressor;
- A explosão
, em que a violência “ultrapassa os limites usuais” e é quando as agressões mais graves acontecem;
- A calmaria
, quando o agressor pede perdão, promete mudança de comportamento, ou consegue jogar a culpa na vítima e ela o perdoa. Nessa etapa, a relação abusiva entra em uma espécie de “lua de mel” até que o ciclo comece novamente.
“Já vi muitos casos de relacionamentos abusivos em que a vítima acreditava que deveria continuar com o parceiro porque merecia passar por isso, pois o abuso a fazia acreditar que ela era uma pessoa difícil de ser amada e, então, nunca encontraria outra pessoa”, revela Patrícia.
“Outra crença é a de que ‘o amor vence tudo’. A vítima acredita que o seu sentimento de amor, paciência e submissão trará a mudança de comportamento do agressor. Nós sabemos que isso não é verdade e que faz parte das crenças distorcidas”, completa.
Amanda é um exemplo de mulher que demorou para conseguir tomar uma atitude, aceitou por muitas vezes as desagradáveis situação achando que o ex poderia melhorar. “Teve uma vez em que falei que tinha decidido fazer uma tatuagem, e ele me disse que terminaria comigo se eu fizesse. No sexo, eu gostava de fazer o ‘básico’. Ele sempre pedia pra eu fazer coisas diferentes, mas eu nunca queria. Quando ele insistia, eu fazia porque me sentia culpada por não agradar e por não deixá-lo satisfeito”, desabafa.
O que também colaborou para a estudante aguentar o relacionamento abusivo foi o modo de persuasão do ex-namorado, que utilizava táticas para conseguir mexer com as emoções dela e, dessa forma, controlava a situação. “A justificativa desse controle todo era sempre algo que me fazia acreditar que ele estava certo. Ele sempre me dizia: ‘acho que isso não é bom pra você’ e acaba me convencendo disso.”
Diferentes experiências
Quem já passou e continua passando por uma situação parecida é a designer Antonella*, de 25 anos. Tanto no relacionamento anterior quanto no atual, ela se sente que já foi podada em diversos aspectos.
“Meu namorado já pediu para eu falar menos – sou faladeira – e vive dizendo que sou ciumenta demais. Na verdade, sou sim, e acho que acabo contribuindo para certas atitudes dele”, afirma, e ainda acrescenta que quando está tomando uma bebida alcoólica ele tira o copo dela, sendo que ele também bebe, além disso, já chegou a esconder o celular dela por ciúmes.
“Várias vezes achava que eu estava fazendo as coisas todas erradas, tentava mudar o meu jeito de ser. Sempre brigamos por ciúmes e em algumas situações já me senti inferior e que não sou boa o bastante para ele”, diz Antonella que, apesar de tudo isso, segue firme no namoro por acreditar que depois dessas experiências não se trata mais de um relacionamento abusivo.
Como se livrar dessa situação?
Sair de um relacionamento assim sozinha é muito difícil, por isso a especialista coloca como fundamental a busca por uma rede de apoio. “O primeiro passo é procurar ajuda de amigos e familiares e também de um psicólogo, pois cada um tem um papel importante no auxílio da vítima”, indica a especialista.
As pessoas próximas vão dar apoio, fazendo a pessoa se lembrar de que ela é querida e amada e que terá companhia em momentos difíceis. Já o psicólogo tem a função de abrir os olhos da vítima, para que ela tome consciência do problema e passe a entender o ciclo de abuso, assim conseguirá planejar o término do relacionamento e ainda pensar em medidas de autoproteção, sem deixar de trabalhar a autoestima para conseguir seguir em frente sem grandes traumas.
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“As pessoas em situações de violência podem ter muitos traumas. A vítima pode chegar a desenvolver quadros de adoecimento mental, como depressão, ansiedade, ataques de pânico, transtorno do estresse pós-traumático e, em casos mais graves, pode levar a tentativa de suicídio”, alerta Patrícia.
Por isso é importante conversar sobre o assunto. Se estiver passando por um relacionamento abusivo, não guarde para você. Tenha claro que ninguém é obrigado a aturar uma relação nesses moldes e que é possível, sim, seguir em frente. “A psicoterapia é fundamental para quebrar o padrão de relacionamento abusivo e para não deixar que isso se repita na escolha de um novo parceiro e no desenvolvimento de novos relacionamentos”, relata a psicóloga.
Você precisa repensar a sua relação
Ficou na dúvida de como anda o seu relacionamento? Para te ajudar a repensar nas atitudes do parceiro, o Delas listou algumas situações que podem indicar se você está ou não passando por situações que caracterizam a relação como abusiva.
Vale ressaltar que nada substitui a avaliação de um profissional. Caso acredite que está em um relacionamento abusivo ou se todo mundo te diz isso e você reluta em aceitar, procure por ajuda, pois se livrar disso será libertador. “Quando separei, me senti triste porque fazíamos tudo juntos, mas depois percebi que estava mais acostumada com a presença dele do que curtindo o relacionamento. Cheguei a conclusão de que sou uma mulher independente e não preciso estar acompanhada pra ser feliz”, completa Amanda.
*Identidade foi preservada a pedido da pessoa