"Muitas mulheres chegam em mim e pedem para eu não deixar o projeto acabar", diz a recepcionista Alexsandra Clelia, líder da comunidade do Sapé, na zona oeste da capital paulista, sobre a ONG Sobre Nós, que luta em defesa da dignidade menstrual, a partir de doações de absorventes para pessoas em situação de vulnerabilidade social.
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Dignidade menstrual é o termo usado para falar sobre o acesso a produtos e condições de higiene adequados para os cuidados com a menstruação, o que inclui, além dos absorventes, acesso a água canalizada e tratamento de esgoto.
"Uma moradora contou esses dias que não tinha condições de comprar absorventes e usava pedaços de pano. Até eu fiquei emocionada, porque eu não imaginava", conta Alexsandra. "Antigamente, a gente via bastante isso. Mas hoje em dia, como as coisas estão evoluindo, a gente não imagina que tem pessoas que usam pano porque não têm condições de comprar absorvente".
713 mil meninas não têm acesso a banheiro em casa
No Brasil, 713 mil meninas não têm acesso a banheiro (com chuveiro e sanitário) em seus domicílios, e 88,7% delas (mais de 632 mil meninas) vivem sem acesso a sequer um banheiro de uso comum no terreno ou propriedade, revela o estudo "Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos" (2021), do UNICEF.
O relatório ainda perguntou se essas meninas usam algum sanitário ou buraco para dejeções e obteve 395 mil respostas positivas. As demais, 237.548 ao todo, responderam negativamente, o que pode indicar, segundo o UNICEF, situação de defecação a céu aberto.
Meninas negras são as mais afetadas: as chances de uma delas não possuir acesso a banheiro em casa são quase três vezes maiores do que as de uma menina branca. Por região, a situação é ainda mais assustadora: meninas do Norte tem 33 vezes mais chances de não terem um banheiro de uso exclusivo dos moradores do que as do Sudeste.
O estudo utilizou dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), por meio da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), abrangendo um total de 15,5 milhões de meninas brasileiras, entre 10 e 19 anos.
Sobre Nós
Nascida em Porto Alegre (RS), a ONG Sobre Nós foi fundada em 2021, por um grupo de amigas que realizava ações de solidariedade, de forma isolada. "A gente percebeu que as pessoas mais prejudicadas no momento que a gente enfrentava eram as mulheres e que elas precisavam de alguém que olhasse por elas", afirma Vitória Cabreira, coordenadora da ONG.
Hoje, a entidade atua em 29 cidades espalhadas por todo o Brasil, entre elas, Rio de Janeiro (RJ), Fortaleza (CE), Osasco (SP) e Santa Maria (RS), realizando entregas de absorventes nas comunidades todos os meses.
"Em algumas cidades a gente tem feito um esforço para entregar um kit de higiene. Então, além do absorvente, a gente entrega papel higiênico, sabonete, às vezes, consegue colocar uma coisinha a mais: toalhinha, absorvente reutilizável, calcinha menstrual... Mas isso depende das doações que a gente recebe. Na maioria das cidades, é só o absorvente mesmo. Só algumas cidades que conseguem se comprometer com o kit", comenta Vitória.
Para realizar as entregas, o Sobre Nós recebe doações em dinheiro, via Pix, ou em material, nos pontos de coleta. "Não temos nada fixo hoje. O que a gente recebe são doações de pessoas físicas que entendem a importância do projeto", lamenta a coordenadora. "A gente sempre enfrenta uma incerteza se vai ter ação ou não naquele mês porque hoje nós não temos nenhuma empresa ou governo que nos auxilie com as doações de absorventes".
Menstruando na escola
A primeira menstruação acontece, em média, aos 13 anos, idade que, normalmente, corresponde ao sétimo ou oitavo ano do Ensino Fundamental. Estima-se que quase 90% das meninas passarão entre três a sete anos da sua vida escolar menstruando. Sem acesso a banheiro ou chuveiro em casa, muitas delas dependerão quase que exclusivamente da escola para fazer o manejo de sua higiene menstrual.
No entanto, o relatório "Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos", mencionado anteriormente nesta reportagem, revela que 321 mil alunas, 3% das meninas estudantes no país, estudam em escolas que não possuem banheiro em condições de uso. Dessas, 121 mil estão no Nordeste, ou seja, 37,8% do total.
Estima-se ainda que, no Brasil, 1,24 milhão de meninas, 11,6% do total de alunas, não tenham à sua disposição papel higiênico nos banheiros das escolas em que estudam. Dentre elas, 66,1% são pretas ou pardas.
Em 8 de março, data em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou um decreto para a criação do Programa de Proteção e Promoção da Dignidade Menstrual. O texto prevê um repasse de R$ 418 milhões para a compra de absorventes que deverão ser distribuídos para cerca de 8 milhões de brasileiros.
O governo prefere usar o termo "pessoas que menstruam", para também incluir na política pública, além das mulheres cisgênero, homens trans, pessoas não binárias e pessoas intersexo. Deverão ser beneficiadas aquelas que:
- I - são de baixa renda e estão matriculadas em escolas da rede pública de ensino;
- II - se encontram em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema;
- III - se encontram recolhidas em unidades do sistema prisional; e
- IV - se encontram em cumprimento de medidas socioeducativas.
Governo de SP veta projeto de lei Menstruação sem Tabu
No mês passado, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), vetou o projeto de lei Menstruação sem Tabu, que previa, entre outras coisas, a conscientização sobre a menstruação e a distribuição gratuita de absorventes. O PL 1.177, de 2019, foi proposto pela bancada feminina da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e aprovado pela Casa em novembro de 2022.
"O projeto tinha três pilares: um, sobre a distribuição de absorventes íntimos, necessários para a dignidade menstrual, mas com uma amplitude muito maior. Uma mulher em situação de extrema pobreza não tem dinheiro para comprar absorvente, uma em situação de rua, também não. Outro pilar era a conscientização, uma campanha sobre menstruação, sobre os direitos das mulheres... e o último trazia uma discussão sobre a perspectiva fiscal. A gente paga muito caro no absorvente porque tem muito imposto, e ele não é visto pelo estado como um item de higiene básica", explica a deputada Marina Helou (REDE).
Além de Marina, o texto era assinado por deputadas de diferentes espectros políticos, como a Delegada Graciela (PL), Janaina Paschoal (PRTB), Beth Sahão (PT), Edna Macedo (Republicanos), Leci Brandão (PCdoB) e Patrícia Gama (PSDB).
O governo paulista argumentou que o projeto previa a adoção de mecanismos de renúncia fiscal pelo estado, para reduzir o preço dos absorventes aos consumidores finais, mas não continha a estimativa do impacto orçamentário e financeiro decorrente da medida.
Entre as justificativas, a gestão de Tarcísio ainda citou o Programa Dignidade Íntima, que prevê a distribuição de absorventes, coletores menstruais e lenços umedecidos nas escolas públicas estaduais, para alegar que o estado já tem uma "sólida política pública estadual referente à superação da pobreza menstrual, que inclui o acesso aos insumos necessários, como absorventes higiênicos, assim como às informações sobre o ciclo menstrual".
O veto também afirma que itens de higiene íntima já são distribuídos no sistema prisional feminino e nas unidades de internação de jovens e adolescentes.
"As justificativas deixam claro que foi uma decisão política e não uma decisão técnica", afirma Marina Helou. "O Programa Dignidade Íntima, que existe hoje, é único e exclusivamente destinado às escolas. Eu reconheço que foi um avanço importante, porém, é insuficiente frente a toda uma população. Também é um avanço existir distribuição de absorventes nos presídios. Mas e quanto às mulheres em situação de rua, mulheres em situação de extrema pobreza, em situação de vulnerabilidade?", questiona.
Já em relação à previsão orçamentária, citada pelo governo paulista, a advogada Maria Gabriela Vicente, integrante do Grupo de Trabalho e Discussão sobre os Direitos das Mulheres do escritório LBS Advogados, lembra que hoje o absorvente é tributado como um cosmético. Ou seja, a tributação dele é equiparada à tributação de um esmalte. "É claro que a não existência de uma previsão orçamentária é uma questão a ser retificada, mas não é um motivo para vetar a lei", rebate ela.
"A gente está falando da compra de absorventes, não apenas para mulheres de baixa renda, mas para todas as mulheres. Hoje, o absorvente não é tratado como um item de higiene básica, é tratado como um cosmético. Isso faz com que as indústrias façam a comercialização e até um embelezamento do que é o produto para lucrar. A gente tem pacotes que ultrapassam a casa dos R$ 5. Para uma mulher que tem um fluxo maior, isso significa um gasto considerável no mês".
O governador ainda afirmava que o projeto de lei "impunha comandos ao poder público" para determinar o que fazer e como fazer, o que, para ele, justificaria a sua inconstitucionalidade. "A gente fez um projeto de lei falando sobre o que é direito da população, agora, como criar a campanha, como trazer essa discusão dos incentivos fiscais, como fazer essa distribuição, a gente não detalha no projeto justamente por acreditar que cabe ao governo decidir", argumenta a deputada estadual.
Já para Maria Gabriela, "talvez não tenha sido observado" o princípio constitucional da garantia da saúde para todos, independente das condições financeiras: "A falta de distribuição de absorventes que é inconstitucional".
A advogada diz acreditar que, existem, sim, questões a serem debatidas: "A gente precisa falar de número de absorventes a serem distribuídos a depender do fluxo, precisa falar do impacto orçamentário, mas o projeto de lei traz discussões muito latentes e essenciais e que são, até mesmo, mais amplas do que às do decreto federal, que se dirige muito mais à distribuição de absorventes", finaliza.
** Gabrielle Gonçalves é repórter do iG Delas, editoria de Moda e Comportamento do Portal iG. Anteriormente, foi estagiária do Brasil Econômico, editoria de Economia. É jornalista em formação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).