Projeto ensina mulheres encarceradas a produzirem o próprio absorvente
Iolanda Candido e Pablo Andres
Projeto ensina mulheres encarceradas a produzirem o próprio absorvente

Descobri que não era apenas o governo que nos impedia de falar sobre o assunto. Tabus são mantidos, também, pelos que se recusam a falar sobre eles. E nós, enquanto sociedade, evitamos falar de mulheres encarceradas. [...] Ou não crescemos ouvindo que a violência faz parte da natureza do homem, mas não da mulher? É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os criminosos devem ser tratados de maneira idêntica. Mas a igualdade é desigual quando se esquecem as diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas e filhos que temos que lembrar que alguns desses presos, sim, menstruam.

O texto que abre o livro "Presos que Menstruam" (2015), da jornalista Nana Queiroz, retrata a realidade de milhares de brasileiras em situação de cárcere no país. Segundo dados do World Female Imprisonment List , o Brasil tem hoje a terceira maior população feminina encarcerada do mundo. São cerca de 42.694 mulheres e meninas presas em regime provisório ou condenadas. Desse total, de acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, 62% são negras.

Chamamos de "pobreza menstrual" a falta de acesso a recursos, instrumentos e informações para higiene e cuidados com a própria menstruação. No passado, a Defensoria Pública de São Paulo entrou com uma ação civil pública contra o Estado para garantir o fornecimento de absorventes e outros itens de higiene em unidades prisionais da região de Ribeirão Preto. Uma das situações mais graves foi observada na cadeia feminina de Colina, onde as presas passaram a usar miolos de pão para conter o fluxo menstrual, por falta de absorventes íntimos.

É diante deste cenário que o 'Revolucione Seu Ciclo' atua nas unidades prisionais levando educação menstrual e ensinando internas a produzirem seu próprio absorvente sustentável. Criado pela femtech — nome dado às startups que utilizam tecnologia para desenvolver produtos e serviços focados na saúde da mulher — Herself Educational, o projeto teve início em 2019, no Rio Grande do Sul, e hoje já impactou mais de 2 mil mulheres em situação de cárcere nos estados do Ceará, Minas Gerais e Rondônia.

femtech  é um braço da marca Herself, especializada em biquínis e calcinhas absorventes. Os primeiros contatos surgiram a convite de uma assistente social e em parceria com a secretaria estadual de Justiça na Penitenciária Feminina de Guaíba, a maior casa prisional feminina do Rio Grande do Sul, com oficinas de costura à mão. 

"Não bastava trocar uma imposição por outra, precisava fazer sentido para elas. Abrir esse diálogo sobre menstruação e ter uma resposta positiva foi algo muito importante para que a gente pudesse estruturar esse projeto e fazer com que ele perdurasse e atendesse a mais pessoas", afirma Raíssa Assmann Kist, CEO e co-fundadora da Herself Educacional.

Era necessário entender se as casas prisionais conseguiriam desenhar o modelo, com acesso a maquinários, e ofereceriam condições adequadas para que as internas pudessem usar absorventes reutilizáveis — como acesso a água. "E então, essas mulheres poderiam fabricar absorventes com mais durabilidade, isso estimularia uma remissão de pena por conta da confecção, e que para além de a fabricação atender uma necessidade de toda a casa prisional, pudesse também servir como uma nova fonte de renda para meninas e mulheres que hoje estão fora do cárcere", comenta Raíssa Kist.

Uma pesquisa realizada pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas mostrou que 45% dos egressos do sistema prisional apresentam dificuldades para voltar ao mercado de trabalho. O estigma dificulta as perspectivas de futuro dessas mulheres, tornando o empreendedorismo feminino uma alternativa para a reinserção na sociedade.

"A ideia é levar a nossa tecnologia a pessoas que talvez não poderiam comprar nossos produtos e dar autonomia para as casas prisionais conseguirem replicar esse modelo, sem depender mais da gente", diz Raíssa. A iniciativa foi considerada um dos oito melhores projetos de trabalho prisional pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), em 2022.

8 de março de 2023: Presidente assina decreto que cria o Programa de Proteção e Promoção da Dignidade Menstrual

No último dia 8 de março, data em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou um decreto para a criação do Programa de Proteção e Promoção da Dignidade Menstrual. O governo prevê um repasse de R$ 418 milhões para a compra de absorventes que serão distribuídos pelo SUS.

A compra e a distribuição dos absorventes deverá ser feita de forma centralizada pelo Ministério da Saúde, e não ficará mais a cargo dos municípios.

Para a advogada Maria Gabriela Vicente, integrante do Grupo de Trabalho e Discussão sobre os Direitos das Mulheres do escritório LBS Advogados, essa centralização no Ministério da Saúde ajuda a uniformizar a aplicabilidade da lei. "Quando você centraliza a compra e a distribuição no Ministério da Saúde, existem menos chances de um município fazer de uma forma diferente do outro, de comprar um absorvente diferente do outro", diz.

O que também mudou foi a estimativa de pessoas que deverão ser atendidas, que passou de 4 para 8 milhões de brasileiros. O novo governo prefere usar o termo "pessoas que menstruam", para também incluir na política pública, além das mulheres cisgênero, homens trans, pessoas não binárias e pessoas intersexo.

Serão beneficiárias do programa pessoas que:

  • I - são de baixa renda e estão matriculadas em escolas da rede pública de ensino;
  • II - se encontram em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema;
  • III - se encontram recolhidas em unidades do sistema prisional; e
  • IV - se encontram em cumprimento de medidas socioeducativas.

Em novembro do ano passado, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) autorizou o repasse de R$ 23 milhões para que estados e municípios adquirissem e distribuíssem absorventes nos meses de novembro e dezembro. Pela estimativa do governo passado, 4 milhões de mulheres — sempre tratando no feminino — seriam beneficiadas pelo programa que teria o custo anual de R$ 140 milhões:

  • I - estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino;
  • II - mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema;
  • III - mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal; e
  • IV - mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.

"A lei que foi sancionada no governo Bolsonaro, de fato, é muito ampla. A sensação que dá é que tudo estava muito aberto. E a gente sabe que quando a lei é pró-direitos humanos e deixa em aberto esse tipo de questão, a possibilidade que ela englobe, para além das mulheres que menstruam, é muito pequena. Como a verba seria repassada aos municípios, isso ficaria a cargo de cada município", comenta a advogada.

A portaria foi assinada em novembro de 2022, oito meses depois da promulgação da lei que determinava a distribuição dos absorventes. O Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual foi aprovado na Câmara e no Senado, nos meses de agosto e setembro de 2021.

Um mês depois, Bolsonaro vetou sua criação, sob o argumento de que o texto não determinava qual seria a fonte de custeio. O Congresso então derrubou o veto, e a lei foi promulgada pelo ex-presidente em março de 2022.

O antigo governo teve 120 dias para regulamentar o programa, o que não aconteceu. O prazo venceu em 8 de julho. "O que acontece é que houve um desrespeito ao prazo. A gente não tem dados concretos do que aconteceu nesse período. O que a gente tem é um grande vácuo: não tem como confirmar se essas verbas foram repassadas, e caso tenham sido repassadas, se de fato esses absorventes foram doados", explica Maria Gabriela.

O que o Ministério da Saúde alegava, durante esse período, é que ainda não havia uma política de como aconteceria essa distribuição. "Não havia um orçamento previsto e nem sabia como isso seria feito: se aconteceria nas escolas, se viria acompanhada de palestras ou se as meninas deveriam ir até as secretarias para buscar essas informações".

E assim essas pessoas ficavam à mercê de iniciativas privadas, como doações por parte de ONGs. A propria lei não previa nenhuma punição nem para o governo federal nem para os estados caso não houvesse o repasse da verba. "Então, a gente não pode falar de uma sanção completa porque não havia previsão legal para isso, mas havendo a lei, é possível que as partes que foram afetadas, que não receberam os absorventes, entrassem com uma ação civil pública para cobrar que ela fosse cumprida", completa a especialista.

Foi o que aconteceu na Justiça Federal do Rio de Janeiro. Como resultado, o governo atual tem 15 dias, a contar da data da assinatura, para apresentar um plano de ação para o novo decreto.

Gastos com absorvente

Um estudo realizado pela plataforma Scanntech, ao qual o iG Delas teve acesso com exclusividade, mostra que o gasto para garantir seis trocas de absorventes por cinco dias durante o ciclo menstrual varia entre R$ 8,65 e R$ 18,64. Dados mais recentes da Síntese dos Indicadores Sociais (SIS), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam que, em 2021, 29,4% da população, isto é, 62,52 milhões de brasileiros, viviam abaixo da linha da pobreza, sobrevivendo com menos de R$ 16,20 por dia.

Para efeito de comparação, o custo para a produção de um absorvente reutilizável, que tem vida útil de três anos, fica em torno de R$ 10 a R$ 15, segundo a CEO da Herself Educacional. Já o preço de uma calcinha absorvente no site da Herself varia entre R$ 78 e R$ 112.

"Para nós, a sustentabilidade só faz sentido em um contexto em que todas as garantias mínimas, como o acesso a água, sejam previstas", afirma Raíssa Kist. Ou seja, a gente só pode falar de absorventes reutilizáveis para pessoas que têm acesso a água.

"O absorvente descartavel é muito importante e vai continuar sendo uma solução, por exemplo, para pessoas em situação de rua ou que moram em domicílios sem saneamento básico", completa Raíssa. No Brasil, quatro em cada dez municípios não têm serviço de esgoto, aponta a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB, 2017).

** Gabrielle Gonçalves é repórter do iG Delas, editoria de Moda e Comportamento do Portal iG. Anteriormente, foi estagiária do Brasil Econômico, editoria de Economia. É jornalista em formação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

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