Mulher de 45 anos, moradora do vale de Zanskar, Índia
Carol Sarmento
Mulher de 45 anos, moradora do vale de Zanskar, Índia

Há 6 anos tive o privilégio de ser voluntária no Dalai Lama Hospital, no meio do Himalaia, em uma região muito inóspita, pouco acessível e de habitantes de elevadas altitudes. Eram pessoas muito simples, sem acesso regular à prevenção  e cuidados em saúde, que viviam com a pele exposta ao sol de terras altas, com muitos raios UV devido à rarefação da atmosfera.

O contraste entre a pele de regiões como rosto e colo e das áreas cobertas era gritante: a cútis era curtida, sofrida e muito envelhecida em relação à idade biológica daquelas pessoas. Eles desconheciam sobre uso de protetor solar, risco de lesões de pele e temas afins; eram pessoas tão humildes que recursos tipo água tratada e esgoto encanado eram luxo, a mortalidade infantil era elevada por doenças infecciosas e as cáries eram as mais rampantes que eu outrora sonhei. Mas os rostinhos de 40 e poucos anos pareciam ter 70 ou mais, infelizmente.

Naquela viagem, pensei muito sobre o efeito do sol e aquelas pessoas. O sol nasce para todos: basta viver no planeta Terra. Ah, preferencialmente em áreas afastadas dos polos norte e sul, uma vez que, por lá, pode ser que haja tempos grandes sem sol, outros com luz contínua, sem diferença de dia ou noite. Mas há sol.

Há sol nos desertos, nas montanhas altas, nas planícies, nos trópicos, em todo lugar. Pode ser que haja mais ou menos insolação, queimaduras de pele, lesões oculares, envelhecimento precoce, bolhas e rugas a depender de como estejamos expostos e de que maneira estejamos nos protegendo, do tanto que saibamos sobre efeitos nocivos e como evitá- los e se estamos usando conhecimento e evidências para escolhermos as melhores ações para termos os benefícios sem os ônus que vêm junto com a radiação solar.

Deixando de lado os devaneios sobre o astro-rei, pensemos nessa mesma linha sobre o câncer. Somos privilegiados em viver em tempos em que a ciência e saúde são desenvolvidas, onde entendemos sobre fatores de risco para doenças com alta mortalidade e o que fazer para viver mais e melhor.

É natural que, com tamanho desenvolvimento, a gente saiba o que fazer para diminuir os riscos e aderir a boas práticas que diminuam a chance de adoecer. Entretanto, precisamos entender que não é possível impedir por completo o aparecimento do câncer, a doença não é 100% evitável. Mas é completamente possível diminuir significativamente os riscos e as chances através de boas escolhas e boas práticas em saúde. 

A doença é como o sol: pode nascer e vir para todo mundo que está vivo. Mesmo que a gente faça o dever de casa completo, seja atento a medidas de prevenção, diagnóstico precoce, boas práticas em saúde e cuidados extras se pertencentes a grupos de risco aumentado: há risco de adoecer e ser acometido pelo câncer.

Até metade dos casos de câncer são evitáveis, o que torna as medidas de prevenção um meio eficaz para reduzir a incidência e a mortalidade pela doença. As medidas de prevenção primária do câncer incluem intervenções e escolhas diárias que inibem/bloqueiam o início do desenvolvimento da doença.

Esse raciocínio é muito válido quando entendemos que os riscos da doença diminuem tanto menos a gente se exponha a fatores de risco, como exemplo: tabagismo, álcool, agentes cancerígenos ocupacionais, vírus que podem causar câncer (ex: HPV), a radiação, o excesso de peso e a obesidade e outros fatores que são modificáveis ​​por mudanças de comportamento ou de políticas.

As medidas de prevenção secundária do câncer referem-se à detecção precoce e à prevenção do seu agravamento. Nesse quesito, são incluídos testes de rastreio que podem identificar e tratar o câncer numa fase precoce do seu desenvolvimento (ex: mamografia para câncer de mama, exame preventivo ginecológico para câncer de colo de útero, toque retal e PSA para câncer de próstata).

As estratégias de prevenção primárias e secundárias (detecção precoce) podem reduzir a incidência do câncer entre um terço e metade dos casos, e por isso são medidas custo-efetivas e essenciais em uma estratégia de controle da doença. Trabalho e cuido de pacientes com câncer todos os dias. Sendo paliativista, faz parte do meu dia a dia atender pessoas com doença em fase avançada, muitas vezes sem poder tratar a doença uma vez que esteja avançada por demais, ou tenha tornado o indivíduo frágil e incapaz de suportar quaisquer modalidades de tratamento que possam ser propostas.

Também, outras vezes, porque as pessoas literalmente estejam na fase final da vida, onde olhar para o câncer se torna menos necessário do que cuidar da pessoa, seus valores e o que mais lhe importe.

Ao cuidar destes pacientes, te digo aqui, sem dúvida alguma: TODAS essas pessoas trazem reflexões, tristezas, remorsos e uma vontade de ter o poder de voltar no tempo e fazer diferente. A consulta todo ano para fazer exame preventivo, ou mais cedo, assim que notou uma alteração pequenininha na pele ou no autoexame das mamas.

Ter não fumado, nem um cigarrinho que fosse. Ter sido mais consciente em relação ao uso do álcool, e não ter feito dele um parceiro do dia a dia. Não ter vivido uma vida sedentária e sem movimentos. Ter dormido melhor, ter zelado pelo descanso e pelas emoções. Não ter trabalhado desmedida e incansavelmente, a ponto de esquecer da vida. Não ter usado bomba. Não ter se vacinado. Ter cuidado de si primeiro antes de cuidar de tantos. Ouso dizer que essa revisão da consciência dói tanto ou mais do que a própria doença, muitas vezes.

Não somos as pessoas isoladas no vale de Zanskar. O mesmo sol que nasce para elas nasce para a gente também. A diferença reside em acesso a informação, conhecimento, ciência, estrutura, tecnologia e escolha comportamental. Assim, e só assim, e mesmo sabendo ser impossível evitar totalmente o câncer, poderemos diminuir sobremaneira os riscos da doença e vivermos com mais qualidade.

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