Na última semana viralizou na internet um vídeo intitulado EctoLife, que apresenta uma instalação repleta de cápsulas incubadoras capazes de garantir o desenvolvimento de fetos do início ao fim da gestação. Muitos internautas acreditaram que o vídeo, que já acumula mais de 1 milhão de visualizações no YouTube, era verídico quando, na verdade, trata-se de um projeto do produtor e cineasta Hashem Al-Ghaili. Mas, afinal, um útero artificial como esse é possível na vida real?
"A verdade é que essa é uma técnica que provavelmente ainda levará muitas décadas para ser desenvolvida e utilizada, pois esse útero artificial precisaria ser sustentado por muitos meses e receber a quantidade exata de sangue, oxigênio, nutrientes e hormônios durante toda a gravidez. Além disso, existem uma série de especificidades da gestação e formação do bebê, como fatores bioquímicos e imunológicos, que ainda não entendemos completamente, então uma série de pesquisas seriam necessárias", explica o ginecologista e obstetra Rodrigo Rosa, especialista em reprodução humana e diretor clínico da Clínica Mater Prime, em São Paulo.
"Mas precisamos pensar também no enorme impacto social que essa tecnologia teria, transformando completamente a maneira como enxergamos a gravidez. Será que uma máquina como essa poderia substituir a intensa relação existente com a epigenética, as emoções passadas de mãe para filho? Precisamos lembrar que o útero não é apenas uma 'casa' para o bebê, existe uma série conexões emocionais, metabolicas e bioquímicas entre mãe e filho que, ausentes, poderiam ter um grande impacto na criança. As questões éticas envolvendo esse tipo de tecnologia são extensas e precisam ser discutidas", alerta.
Outro avanço polêmico apresentado pelo vídeo é com relação à genética, com a possibilidade de não apenas analisar os embriões para seleção daqueles que são mais viáveis, mas também de modificá-los geneticamente para escolha das caracteristicas do bebê. "Atualmente, em procedimentos de fertilização in vitro, realmente conseguimos, graças aos avanços nos testes genéticos, selecionar os embriões com maior viabilidade para serem implantados no útero. Através desses exames podemos identificar, por exemplo, se existe alguma alteração cromossômica que possa causar abortos ou síndromes ou se o embrião tem alguma doença genética conhecida", afirma o médico.
"No entanto, não é possível alterar as características físicas dos futuros bebês. O máximo que seria possível atualmente é a escolha do sexo do bebê, pois o teste genético consegue detectar se o embrião possui o cromossomo sexual X ou Y. Mas, eticamente, essa prática não é permitida pelo Conselho Federal de Medicina, com exceção de casos em que existem doenças ligadas ao sexo. Já a escolha da cor dos olhos, dos cabelos ou da pele, por exemplo, não é possível e, ainda que fosse, dificilmente seria permitida pelos órgãos reguladores por questões éticas, principalmente para evitar a eugenia", alerta ele. A eugenia é um conceito preconceituoso que visa, a partir da genética, eliminar características indesejadas da sociedade para "melhorar" a população através da seleção de seres humanos supostamente perfeitos.
O que já é possível (e ético) hoje?
Apesar de um bebê inteiramente gestado em um útero artificial ainda ser coisa de ficção cientifica, hoje já existem tecnologias que permitem que estágios específicos da gestação sejam realizados fora do útero, como é o caso de bebês prematuros e embriões que são cultivados em laboratório até estágios mais tardios de desenvolvimento. "Uma gestação padrão dura, em média, 40 semanas, mas existem casos de bebês nascidos com apenas 21 semanas que sobreviveram por meio de incubadoras", destaca Rodrigo Rosa.
"Hoje também conseguimos cultivar embriões formados a partir de fertilização in vitro em laboratório até que atinjam o que chamamos de estágio de blastocisto, que ocorre cerca de seis dias após a fertilização. Se um embrião é saudável o suficiente para sobreviver até esse estágio fora do corpo, é provavél que ele tenha uma chance maior de permanecer após a implantação no útero", completa.
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Já com relação às mulheres sem útero, que seriam as principais beneficiárias de uma tecnologia de útero artificial, a maior revolução atualmente disponível é a técnica de transplante de útero. "O transplante uterino é uma técnica cirúrgica que consiste, basicamente, na implantação do útero de uma doadora, enquanto em vida ou após a morte, em uma receptora que seja infértil devido a um fator uterino. O Brasil é, inclusive, pioneiro nessa técnica, visto que, em 2017, uma mulher que recebeu o útero de uma doadora já falecida deu à luz um bebê saudável pela primeira vez", explica o especialista em reprodução humana.
Mas o transplante uterino ainda é considerado um procedimento experimental, possuindo riscos significativos, como infecções, rejeição pelo organismo e formação de coágulos sanguíneo, além de aumento nas chances de pré-eclâmpsia, prematuridade e abortos durante a gravidez. "Então, embora esse procedimento seja revolucionário para o tipo certo de paciente, muito provavelmente não se tornará o padrão em um futuro próximo".
Hoje, o procedimento padrão para mulheres sem útero que desejam engravidar, assim como para homens solteiros e casais homoafetivos do sexo masculino, é a gravidez por útero de substituição, popularmente conhecida como barriga solidária. "Nesses casos, o procedimento inicia-se como uma fertilização in vitro convencional, com os óvulos e espermatozoides, que podem ser do casal ou doados, sendo fecundados em laboratório. Em seguida, os embriões formados são transferidos para o útero da mulher que irá gestar o bebê", afirma o ginecologista.
"Mas existem regras rígidas no que diz respeito ao útero de substituição, sendo que a mulher disposta a ceder o útero para o procedimento deve ter mais de 18 anos e ser parente sanguínea de até quarto grau de um dos parceiros. Outros casos precisam receber autorização do Conselho Federal de Medicina e, caso não haja candidatas para ceder o útero, não é possível realizar o procedimento", finaliza.