Segundo dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, só no ano de 2021 ocorreu um estupro a cada 10 minutos no Brasil e foram registrados 100.398 casos. Números tão alarmantes se intensificaram com o mais recente escândalo de violência sexual que veio a público nas últimas semanas, o de uma mulher sendo estuprada durante o parto .
Além desse chocante caso, em 2020 também se tornaram conhecidos grupos de estupros coletivos do IML, nomeado “Festa do IML”, com homens que incentivavam a necrofilia e divulgavam fotos sexualizando os cadáveres de mulheres.
A advogada Clara Maria Borges, professora da Universidade Federal do Paraná, defende que essas são grandes provas de que estupro não uma questão da mulher “provocar” e sim de um sentimento de dominação, porque não importa se as vítimas são crianças, idosas, sensuais ou até mesmo se estão vivas.
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“Esse caso recente do estupro na hora do parto mostra muito bem que não é uma questão de um desejo sexual incontrolável masculino, aquela mulher estava em cesariana, totalmente vulnerável, não tinha nada de provocativo nela. No entanto, esse homem se sente à vontade para violentá-la. Não é uma provocação feminina que leva ao estupro, ao contrário, é justamente essa ideia de que o homem tem esse controle sobre o corpo da mulher. Eles estupram porque podem estuprar”, diz a advogada.
Cultura do estupro
No imaginário social, a imagem de um estuprador e de um estupro é muito bem construída, em que estupradores são homens que beiram a descrição de um vilão da Disney, enquanto o estupro ocorre em uma rua escura, onde a mulher é atacada e precisa lutar heroicamente por sua vida.
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Entretanto, os dados mostram que a realidade é bem diferente. De acordo com o Anuário de Segurança Pública de 2019, 84% das vítimas de estupro foram violentadas por conhecidos ou pessoas de confiança. São os amigos, padrastos, tios, namorados que estupram, pessoas comuns com quem elas convivem todos os dias.
Para os especialistas, o estupro é um problema cultural acima de tudo, embora realmente existam casos em que estupradores são pessoas doentes ou que já foram até mesmo vítimas da violência sexual, mas essa não é a realidade para grande parte dos casos.
O psicanalista Leandro dos Santos explica ser um erro pensar em estupradores de forma tão caricata, pois, como falado acima, muitos dos violentadores são parte do círculo de convivência da vítima. Além disso, ele alerta sobre as generalizações e que não se pode presumir que em todos os casos de estupro são feitos por pessoas doentes ou psicopatas.
“É um erro crasso acreditar que o estuprador se limitaria a ser um bandido de história em quadrinhos. As estatísticas mostram o oposto, geralmente é alguém muito próximo, que na maioria das vezes vive com a vítima. Isso pode acontecer muito mais perto da gente e com muito mais frequência, penso que o melhor é desconstruir esse imaginário, essa crença que nós temos que bastam nos protegermos contra os malvadões e está tudo bem”, fala o psiquiatra.
Clara Maria Borges também argumenta que esse imaginário sobre o estupro e o estuprador fazem parte da cultura do estupro, pois ele não é realista e ainda dificulta a identificação dos casos reais de violência sexual.
“Eu sempre falo que esse script criado sobre o estupro é muito prejudicial, porque muitas vezes não é o acontece. Às vezes a vítima só se da conta depois, porque ele é praticado justamente pelo seu namorado, por alguém tão próximo. Na maioria dos casos, especialmente com crianças, não acontece nem um ato físico de violência, além disso, esse script acaba deslegitimando qualquer estupro que não siga esse roteiro, que são a maioria”, explica a especialista.
A advogada também levanta o ponto da diferença na construção social entre homens e mulheres. Enquanto as mulheres são ensinadas a se protegerem do estupro, os homens não são ensinados a não estuprarem, pelo contrário, homens, especialmente os brancos, são incentivados a pensarem que o corpo feminino está à sua disposição e controle.
“Não tem nada a ver com provocação ou desejos incontroláveis, mas de se sentir superior e de controlar. Homens assim não querem renunciar sua posição de status do controle do corpo feminino e mulheres que não se encaixam no esperado da sociedade, como lésbicas e sexualmente ativas, ainda são tratadas como se merecessem o estupro ou como as verdadeiras culpadas do crime”, afirma Borges.
Violência institucional
Além da violência sexual vivida pelas vítimas, a institucional também aparece no momento em que a mulher decide denunciar o estupro. A psicóloga Maria Rafart destaca como a revitimização é presente nas instituições de saúde, familiares e de polícia, o que acaba fazendo a vítima ter um duplo sofrimento.
“O que é revitimizar? É culpar a vítima pela violência que ela sofreu, essa é a revitimização. Os nossos rituais legais também acabam colocando a vítima em uma situação de revitimização, um exemplo é quando colocam a mulher em frente ao seu agressor, despertando nela aquela sensação de desproteção. Além dos casos em que a vítima é desacreditada, isso acontece muito no abuso sexual intrafamiliar, em que a vítima acaba se sentido muito mal pela falta de acolhimento e com questionamentos como ‘por que você não fugiu? ‘, ‘Por que você não avisou antes?’, também são tentativas de tentar culpar a pessoa que sofreu a violência”, relata a profissional.
A violência institucional também tem cor. Mulheres pretas são mais vulneráveis a ela, devido à brutalidade policial e a hipersexualização, que deslegitimam a violência sexual, pois, na cultura do estupro, mulheres sexualizadas “provocam” o estuprador.
“Existe essa questão do racismo estar presente durante o atendimento às vítimas. As mulheres negras são consideradas provocantes e contribuintes para a violência que elas sofreram. Também se tem a ideia de que mulheres pretas são mais fortes e resistentes, podendo aguentar diversas violências, enquanto as brancas são frágeis”, argumenta a mestre Clara Maria Borges.
De acordo com dados também do Fórum Nacional da Segurança Pública deste ano, mulheres negras possuem 11,3% mais chances de serem estupradas e fazem parte de 52,2% dos casos registrados.
Consequências do estupro nas vítimas
Rafart explica que entre as sequelas que pessoas que sofreram violência sexual são classificadas em três tipos: as de curto prazo, que são traumas recentes e físicos, o de médio prazo, que se estendem por mais tempo, e, por fim, as de longo prazo, em que geralmente a pessoa vai ter de lidar por quase toda a vida e afeta princialmente quem já possuía previamente predisposições para depressão e suicídio.
“Hoje estudos mostram que uma pessoa abusada que não foi tratada corretamente, quando as consequências ainda eram de curto e de médio prazos, pode ter por toda a vida questões de problemas mentais”, diz a psicóloga.
A profissional também explica que esses traumas quando não tratados logo no início também podem afetar a autoestima da pessoa e ser transmitidos a próximas gerações das vítimas.
“Essa sensação de desvalor é tão grande que afeta a autoestima da pessoa e afeta inclusive a capacidade dela de ser protetiva com os seus próprios filhos e filhas. Uma pessoa abusada pode, infelizmente, se sentir fraca e não merecedora de companhia. Também é muito comum essa pessoa desproteger os filhos causando o que a gente chama de intergeracionalidade da violência, o que quer dizer uma violência acaba gerando outra”, conclui Rafart.