O direito à terra sempre foi a principal reivindicação histórica das mulheres indígenas. Por isso, a votação em trânsito sobre o marco temporal tem as mobilizado fortemente nas ruas de Brasília . Caso a proposta seja aprovado, afetará 303 territórios indígenas que estão em processo de demarcação.
Um relatório publicado, em 2010, pela Organização das Nações Unidas mostra que as mulheres indígenas do mundo têm mais chance de serem estupradas do que as não-indígenas. Entre 2007 e 2017, 8.221 casos de violências contra as mulheres indígenas foram registrados no país, segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.
Para Maia Aguilera, advogada e indígena Itonama (Amazônia boliviana), a história da constituição do país se deu a partir da exploração de terras indígenas e do estupro colonial. Uma história de violação desses corpos territoriais, por meio de genocídios e etnocídios. Deste modo, a violência de gênero contra as mulheres indígenas, para Maia, passa pela violência contra os povos originários deste continente e pela violência contra as mulheres em geral.
“Isso faz com que existam situações como as que vimos recentemente, em que Raissa Guarani Kaiowáa, de 11 anos, sofreu um estupro coletivo e foi assassinada no Mato Grosso do Sul no Dia 9 de Agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas. Ou de Daiane Griá Sales, jovem indígena kaingang, de 14 anos, que foi encontrada morta”, diz.
Para a antropóloga indígena Luana Kumaruara, a violência que mulheres indígenas sofrem estão presentes em vários aspectos, que vão desde a falta de preparo de agentes de saúde pública para lidar com indígenas à discriminação racial. “Desde quando a mulher indigena precisa dar à luz na cidade, dentro do hospital, a gente sofre a violência do racismo, não somos vistas de forma humana na hora da assistência e do cuidado hospital”, declara.
A violência física contra mulheres indígenas internamente nas aldeias também é uma realidade. Luana comenta que, nos últimos anos, a chegada e o consumo de álcool e drogas facilitam as agressões físicas. “Com a chegada destas substâncias, os nossos homens começam praticar com mais recorrência violência física as nossas mulheres indígenas. A Lei Maria da Penha não contempla gente”, explica.
A antropóloga relembra que durante a infância e adolescência sofreu violência sexual e que isso é uma realidade de muitas mulheres indígenas, que não se veem acolhidas pelo Estado. "Sofri na adolêscencia violência sexual dos patrões quando fui trabalhar na cidade. Eu morava com eles e eles eram muito confiante que eu não iria denunciar", relembra.
Vulneráveis socialmente, as mulheres indígenas na linha de frente dos movimentos sociais também são ameaçadas e agredidas. Para Luana a violência que elas sofrem é a mesma violência da invasão do Brasil: com ameaça de morte e estupro. Em 2018, ao acompanhar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, um produtor de soja quebrou seu celular e em seguida tentou agredi-la.
A questão de Gênero e mulheres indígenas
Para a pesquisadora Renata Rodrigues as pautas indígenas foram historicamente invisibilizadas nas discussões mais amplas de gênero. Quando elas são discutidas partem para uma perspectiva "paternalista", nas quais mulheres indígenas são tidas como vítimas que precisam ser salvas e não enquanto protagonistas que falam por si mesmas.
“Isso faz inclusive com que muitas deixem de acreditar que perspectivas feministas e indígenas podem ser complementares. Essa oposição se estabelece em relação às narrativas ocidentais do feminismo, onde históricamente o movimento feminista hegemônico ignorou as dimensões de classe, raça, etnia e sexualidade enquanto classificações sociais que, sim, estão relacionadas com a construção do gênero, mas não só", explica.
Desta forma, para a pesquisadora, entender o "gênero" enquanto categoria única reforça um imaginário específico sobre a categoria "mulher", que é ditado por um feminismo branco sem preocupação com a emancipação de outros grupos sociais. "Sabemos que as violências sofridas pelas mulheres atravessam outras dimensões, e a dimensão colonial é fundamental para entender essas violências", declara.
Unidas contra a violência
As mulheres indígenas se organizam em diversas associações, que são as mulheres do mesmo povo ou de uma mesma região. A nível nacional, a ANMIGA ( Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade), em 2019, organizou a I Marcha das Mulheres Indígenas, cujo o tema foi: "Território: Nosso Corpo, Nosso Espírito".
Nos dias 7 a 11 de setembro deste ano, ocorrerá a II Marcha das Mulheres Indígenas, com os temas: "Mulheres originárias: Reflorestando mentes para a cura da Terra". Elas participam do Acampamento Terra Livre (ATL), que ocorre todos os anos em Brasília.
Esse ano, segundo Maia, foi a maior mobilização que os povos indígenas fizeram desde a Constituinte de 1988, justamente para barrar projetos inconstitucionais e que legitimam a pilhagem como o Marco Temporal, que está sendo julgado pelo STF, e o PL 490/07.
Luana finaliza que o suporte psicossocial e jurídico é uma demanda e luta constante que as mulheres indígenas possuem. "Para que mulheres não desistam das suas demandas e suas vidas este acompanhamento é muito importante"..