“Já chorei muito sozinha com a sensação de que isso não vai acabar. Tenho histórico de depressão, faço tratamento há oito anos e, neste momento, está muito difícil segurar e me manter firme. Aumentei recentemente a dose do meu antidepressivo. Eu não posso parar, por mais difícil que esteja, não posso me dar ao luxo de jogar a toalha porque sei que estou ajudando muita gente. Estamos assim há um ano e já passou dos limites. Estamos exaustos”.
O depoimento da médica infectologista Mariane Taborda, de 33 anos, traduz exatamente o que os profissionais da saúde estão passando no ápice da pandemia da Covid-19, quando o Brasil registrou 300 mil mortes por conta do vírus. Além disso, o país também é o que registra maior número de óbitos na média diária, segundo dados do Our World in Data: são 2.364 a cada 24h, mais do que a soma dos óbitos registrados pelos quatro países seguintes – EUA (940), México (561), Itália (411) e Rússia (405).
A situação dos hospitais está caótica e não há mais leitos para receber os novos pacientes que chegam para tratar o coronavírus ou mesmo outras doenças como câncer e até transplante. O Hospital das Clínicas, no centro de São Paulo, por exemplo, já chegou ao seu limite e – segundo fontes do iG – tem feito intubação de pacientes na própria enfermaria porque a UTI não tem mais espaço.
Ana Paula Silva Swerts, de 34 anos, é médica intensivista da UTI Covid nos hospitais São Luiz e Villa-Lobos, ambos em São Paulo, e tem acompanhado de perto essa realidade por onde passa. As instituições particulares também já registraram superlotação e falta de leitos e vivem o mesmo caos do Sistema Único de Saúde, mais conhecido como SUS. Ela também faz um relato profundo de sua dor ao ver o colapso na saúde brasileira.
“Por várias vezes chorei sozinha, mesmo durante o plantão. Chorei pelo cansaço de conseguir deitar apenas 2 horas em um plantão de 24 horas e por, muitas vezes, não conseguir nem comer. Também já chorei por ter feito tudo que estava ao meu alcance e não conseguir salvar uma vida, por medo do futuro se as pessoas não se conscientizarem e por todos aqueles que perderam seus entes queridos para essa doença”, narra.
A intensivista salienta que existe muito amor envolvido entre os profissionais da saúde e seus pacientes, principalmente em um momento tão difícil como este. Swerts ressalta que eles tratam cada paciente com muito carinho e respeito, comemorando cada pequena conquista junto com os familiares e não raramente chorando quando há uma piora.
“Gosto de conhecer a história de cada paciente que trato, aprendo todos os dias com eles. Por vezes, depois da decisão de intubação, entro no quarto antes do procedimento para segurar a mão do paciente, conforta-lo e dar esperança de nos encontrarmos em breve. Não tem como não se apegar e não se entristecer com a morte”, diz.
“A gente sempre espera que todos melhorem, mas sabemos que alguns pacientes não vão conseguir sobreviver e isso é desesperador porque não estamos nem perto do fim dessa pandemia. Então, quantas pessoas mais vão morrer? O que tem sido mais difícil para mim ultimamente é ligar para os familiares, dizer que seu parente piorou nas últimas horas e precisará ir para a UTI. Fico muito aflita, o coração acelera, a perna fica bamba, tenho vontade de chorar com alguns no telefone. Hoje você está segurando a mão daquele paciente e fazendo de tudo para aquilo acabar, daqui a dois dias ele faleceu. É muito duro”, lamenta Taborda.
A psicóloga Raquel Alves, do hospital Vera Cruz, em Campinas, também tem vivido essas cenas de luto diariamente. Ela é uma das profissionais que foi incumbida de dar suporte mental aos pacientes, familiares e até mesmo para seus colegas. Ela conta ao iG Delas que essa relação de médico e enfermeiro com um paciente é algo natural de todos os seres humanos, portanto, quando a morte bate à porta, é natural e compreensível que o profissional apresente sentimentos de pesar e sofrimento.
“Todo esse sentimento precisa ser legitimado e validado pela sociedade, desmistificando a ideia de que o profissional de saúde não se envolve, não sente e não sofre, culminando no que chamamos de ‘luto não reconhecido’. Isso não existe! Antes de sermos médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, etc., somos seres humanos e, sim, nós nos enlutamos quando perdemos um paciente”, esclarece.
Ela também explica que não existe uma fórmula mágica para que o profissional da saúde não se machuque com a perda. Ela completa que é preciso existir o reconhecimento de que todos são seres humanos, movidos a emoções e sentimentos, logo, validar e legitimar o que se sente é crucial.
“O ideal seria que as faculdades ministrassem, em seus cursos, matérias sobre a morte e o morrer. Que nos educassem para tal, mas a realidade que se apresenta é muito diferente. Daí a dificuldade que muitos profissionais ainda encontram quando precisam comunicar uma má notícia", acredita. "Ainda faço uma ressalva: isso tem mudado, graças as Deus. O que percebo são muitos espaços oferecendo formações específicas para falar sobre morte e luto de forma natural e esperada porque a morte é de fato um evento natural. Ocorre que, dado o contexto, ela tem tomado uma proporção que vem nos assustando e nos distanciando a querer falar sobre”, completa.
Festas clandestinas
Antes de várias cidades decretarem o lockdown, era comum surgirem notícias de festas clandestinas descobertas pela polícia ou até flagrar pequenas aglomerações de pessoas que estavam bebendo despretensiosamente com os amigos em um bar. A falta de preocupação com a pandemia foi um dos fatores que elevou o número de internados e de mortes em todo o território nacional.
Dirigir pelas ruas de São Paulo, por exemplo, e assistir de camarote cada uma dessas pessoas levando a vida como se nada estivesse acontecendo tem sido duro para Mariane e Ana Paula. As duas relatam uma sensação quase explosiva de sair gritando com todos aqueles que desrespeitam as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) como uso intensivo de máscara, álcool gel e distanciamento social.
“Fico indignada, algumas pessoas vivem como se nada estivesse acontecendo. Ainda vejo muitos pacientes que achavam que nunca iam pegar, que ia ser uma ‘gripezinha’ e que se arrependem de terem feito aglomerações. Você nunca sabe se vai ser o caso grave ou o leve ou quem vai ser o próximo. Às vezes tenho vontade de gritar para todos irem paras suas casas e saírem das ruas. Não é possível que não estejam vendo tudo o que acontece”, declara Taborda.
Ana Paula afirma que a cada notícia que vê sobre baladas clandestinas e pessoas agindo como se tudo estivesse normal, fica “extremamente chateada”. Ela pondera que todos estão cansados de ficar em casa, mas alerta que o cansaço e tédio entre quatro paredes é melhor do que a tristeza da morte.
“Não penso que essas pessoas poderão ser os próximos pacientes e sim que existem tantos que estão lá nos hospitais que gostariam de ter essa chance de mudar e não podem. Se pudesse lhes dizer algo seria algo como ‘se cuidem, essa doença não escolhe idade, família ou região. A qualquer momento pode chegar à sua casa. Não permitam que isso aconteça’, alerta.
Já a psicóloga confessa que sente uma mistura de sentimentos que oscila entre a raiva, a pena, a impotência, o medo e, principalmente, a certeza do desrespeito. Raquel acredita que o que mais prevalece neste momento é a tristeza pela falta de respeito por aqueles que estão nos hospitais lutando por vidas e exaustos com o excesso de trabalho durante a pandemia.
“Como é possível nutrir e manter sentimentos de esperança diante de uma grande parte da sociedade que não valoriza e não te respeita, minimizando a sua luta, sua garra e coragem em se arriscar a estar num ambiente de guerra, lutando para salvar vidas? Mas estou aqui, estou lutando, seguindo e confiando e, apesar de tudo, de toda essa falta de humanidade, sigo. Ainda com fé e é ela que me fortalece e acende novamente a esperança de dias melhores.”