No Brasil a docência tem gênero. Segundo dados do Inep, em um universo de 2,5 milhões de professores, as mulheres correspondem a 70% do corpo docente no país. Exercendo uma profissão física e mentalmente desgastante, as professoras brasileiras precisam conciliar o trabalho - que mesmo antes da pandemia já era levado para casa - com as atividades domésticas.
Essa situação se agravou no contexto da pandemia, conforme mostram os depoimentos das professoras entrevistadas pelo Delas. O ensino remoto precário, a pouca adesão dos alunos às aulas on-line, as incertezas em relação ao futuro e o aumento da carga mental para aquelas que são mães sugerem que não há nada o que comemorar neste 15 de outubro, Dia dos Professores.
Com a cara e a coragem
Professora das redes pública e privada, Bárbara Maria, de Santos, no litoral de São Paulo, conta que no começo da pandemia as aulas onde leciona eram gravadas. “A gente tinha que gravar, editar, criar efeitos… Eu fui jogada no meio disso, meu notebook superaqueceu”, lembra. Ela diz que precisou comprar um notebook para sua filha, que tem 17 anos e está no ensino médio, para que ela pudesse assistir às aulas.
“Aula on-line não é EAD. A gente dá aula com um material que não é preparado para uma aula on-line”, diz a professora, que transformou a cozinha de casa em sala de aula. Apesar de ter levado alguns materiais da escola para lá, as condições de trabalho ainda são bem improvisadas. “Eu não tenho lousa e a Internet é paga com o meio dinheiro, então é a cara e a coragem”.
Por conta das aulas, ela conta que a dinâmica da casa mudou completamente. “Eu não posso lavar roupa por causa do barulho da máquina que vem da área de serviço, minha louça não pode ser lavada até minhas aulas acabarem (normalmente entre 16h30 e 17h). Mesmo quando a aula acaba eu tenho que estar pronta pra uma reunião, caso algum pai queira falar comigo. Então eu tenho que estar logada o tempo todo”, diz.
Bárbara ainda fala que a relação com os pais dos alunos pode ser difícil, pois esse sistema acabou fazendo com que a relação entre público e privado se perdesse. “Já aconteceu de uma mãe se intrometer na minha aula on-line e essa mãe estava gritando na minha cozinha, minha filha veio ver o que estava acontecendo… É complicado”, desabafa. Ela diz ainda que dá aula de História e que isso requer cuidados extra para não sofrer ataques por parte dos pais.
Segundo a professora, a relação com a filha também foi prejudicada por conta dessa nova realidade. “Tem dias que eu mal vejo a minha filha, porque ela tá no quarto assistindo às aulas dela. Ela está estudando pro vestibular e está extremamente nervosa e não dá tempo de ser a mãe ouvinte, que dá apoio”, lamenta. “O único dia da semana que eu defini para parar é sábado, porque no domingo eu acordo cedo para preparar as aulas da semana toda”.
Revezando a Internet com os filhos
Carliene Sena, professora do ensino fundamental da rede pública do Distrito Federal, diz que a principal preocupação como docente tem sido a falta de acesso dos estudantes da escola pública às aulas on-line. “O objetivo de ser do professor são os estudantes, então a gente ficou muito preocupado no início e esse é o maior desafio que temos até hoje”. Ela relata que há estudantes que no começo do ano se empenhavam em sala de aula, mas que depois não foi possível ter nenhum contato com eles ou com suas famílias.
Segundo a profissional, o suporte dado pela Secretaria de Educação do Distrito Federal não tem dados suficientes para realizar as chamadas de vídeo, despesa que acaba recaindo sobre os docentes. “Já que eles não deram Internet suficiente, eles não podem obrigar a gente a fazer aulas no Meet. Mas como a gente entende que é importante, a gente faz”, conta.
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Apesar disso, a professora diz que a adesão dos alunos é muito baixa. “Da minha turma de 23 eu só tenho 16 na plataforma. Os outros sete deveriam pegar atividades impressas na escola, mas nem todos pegam. Deveriam mandar fotos, mas nem todos mandam. Dos 16 que estão na plataforma, apenas dez participam das aulas do Meet e nem sempre todos estão on-line. Às vezes eu faço chamada pra duas, três crianças”, diz.
A professora diz que no local que reside há apenas uma operadora e o serviço é de baixa qualidade, o que faz com que ela e seu filho de 16 anos, aluno do 2º ano do ensino médio, tenham que revezar uso da Internet doméstica, já que ela não é suficiente para mais de um computador concetado ao mesmo tempo. Assim como Bárbara, ela diz que tenta dialogar e acompanhar os estudos do filho, mas que é difícil, porque causa do trabalho docente e das atividades domésticas.
Além do rapaz, Carliene tem uma filha de 18 anos, que está no primeiro ano da faculdade. “Eu tive que mandar fazer uma mesa de computador, armários, comprar uma cadeira pra preparar minimamente o ambiente tanto pra eles quanto pra mim, porque a gente tinha um ambiente só em casa e, agora, como eu passo o dia inteiro na frente do computador eles estavam sem espaço para estudar”.
Dores de cabeça, nas costas e articulações
Na avaliação de Sofia Reynoso Sosa, professora do ensino fundamental e médio nas redes pública e privada de São Paulo/SP, os professores de São Paulo foram prejudicados pelo adiantamento do recesso de julho no meio do ano, e isso teve impacto sobre os alunos.
“No momento em que o Estado decreta férias no início da pandemia, ele afasta os alunos da escola e ele tira dos alunos a escola. De cara o governo errou. Tirar a escola de um aluno é uma violência, isso é uma coisa que a gente precisa fazer com cautela e com carinho”, diz.
A professora conta que, quando as aulas foram retomadas, cortou-se o vínculo entre os estudantes e que vários alunos não retornaram. “Eu tinha duas turmas com 33 alunos em cada. Quando começaram as aulas após o recesso, eu tinha uma média de 20 alunos, o que já é uma adesão muito grande. Depois eu descobri que eu era a única que estava dando aula de fato, os demais estavam enviando atividades”. Ela diz que essa adesão caiu, principalmente, no segundo semestre.
Ela lembra que, no momento em que as aulas na escola pública foram suspensas, a escola privada deu início ao treinamento dos professores para as aulas on-line. “Nessas duas semanas eu fiquei louca. Eu fiquei brava, de mal humor, não comia direito. A gente ligava o computador às 8h e desligava às 21, 22h, só fazia um intervalo pra almoçar. Quem não tinha filhos, como eu, ainda conseguia tomar um banho, mas depois tinha que voltar e ficar até à noite no computador”.
Ela continua: “Além disso, a canseira do trabalho, a dor nas costas de passar o tempo todo sentada, a dor nas articulações no braço… Eu não tenho um escritório em casa, então foi fisicamente doloroso ficar mais de 12 horas na frente do computador”. Passados alguns meses, ela conta que segue trabalhando pelo menos das 9h às 19h, de segunda a sexta.
Sofia ainda analisa o momento atual da edução. De acordo com ela, apesar de estarmos vivendo um momento que fala muito sobre protagonismo, não há um projeto educacional que incentiva que os alunos sejam autônomos, o que torna o trabalho dos professores ainda mais desgastante e também recai sobre sobre os alunos.
“A gente não tem um projeto de educação que incentive o hábito da leitura, a gente tem alunos que chegam ao segundo, terceiro ano sem saber ler ou compreender um enunciado simples quando a gente propõe uma atividade”, avalia.