Clara Averbuck, escritora, dançarina e feminista
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Clara Averbuck, escritora, dançarina e feminista

A autora Clara Averbuck  se aventura pela segunda vez como dramaturga e apresenta hoje, 3 de dezembro, às 20h, no espaço Satyrianas (SP) o embrião de sua peça, Vermelho Noir. O texto conta a história de Ângela, uma mulher de seu tempo mas totalmente transgressora, peita a tudo e todos. Um sucesso na carreira, vive levando rasteiras do Patriarcado Pedra Preta, o fictício país que se incomoda com suas atitudes e morre de medo que ela influencie "mulheres de bem".

Clara Averbuck tem nove livros publicados e está a caminho do décimo. Nasceu em 1979 e foi uma das grande revelações da geração 2000. Conhecida por usar a vida como matéria-prima de seu trabalho, Clara já teve a obra adaptada para cinema e teatro e foi publicada em Portugal, Inglaterra e toda a América Latina.


Em entrevista exclusiva para o iG Delas, Clara fala um pouco sobre seu novo projeto, o impacto da pandemia em seu trabalho artístico e os planos para o futuro.

DELAS - Essa é sua segunda incursão no teatro. O que você sente que mudou de lá pra cá na sua trajetória como escritora?

CLARA AVERBUCK: Meu primeiro texto foi A Stripper, que escrevi pra Grazi Meyer, atriz e dançarina, encenar. Foi escrito em 2018 e encenado no mesmo ano. Eu cresci nos bastidores do teatro, mas nunca tinha me aventurado na dramaturgia. Foi diante da possibilidade de encenar um texto em construção que surgiram as duas ideias, tanto a Stripper quanto Vermelho Noir, essa peça que estou escrevendo agora.

2018 e 2019 foram anos horríveis para mim no âmbito pessoal, minha vida ficou toda bagunçada e isso afetou minha escrita, mas, aos poucos, vou retomando o ritmo. Apresentar essa peça embrionária é justo uma maneira de eu me colocar de volta nos eixos.


DELAS - Como você avalia que a pandemia afetou seu trabalho? Desde seu exercício como escritora aos demais trabalhos que você realiza, como as oficinas de escrita?

CLARA AVERBUCK:A pandemia afundou minha sanidade. O isolamento, a falta de perspectiva e o desmonte da cultura, que já vinha de antes, afetaram demais quem é desse setor. É um desgraçamento mental ter que lidar com este governo que odeia cultura e educação e quer a todo custo nos destruir e com um vírus potencialmente letal que se espalhou pelo mundo. Mas no começo dessa fase, muita gente estava buscando cursos para se ocupar ou coisas que sempre desejou fazer e não tinha tempo, mas, com o passar dos meses, acredito que os interessados foram sendo afetados financeiramente pela crise e os alunos foram diminuindo.

Acredito que no próximo ano eu possa voltar a dar aulas presenciais, mas não pretendo acabar com as turmas on-line, já que permitiu que pessoas de outros lugares acessassem os materiais do curso. Seis alunos publicaram livros depois de fazer a oficina nesta pandemia, eu fiquei muito feliz e honrada de fazer parte dessas publicações. Em breve teremos também coletâneas de textos produzidos durante uma das oficinas.

DELAS - Você também é dançarina de pole dance. Podemos esperar uma junção da dança e literatura no futuro?

CLARA AVERBUCK: Eu tenho um projeto que pretendo colocar em prática assim que pudermos conviver em sociedade de novo, justamente com escrita e dança. Dançar também cria narrativas, e pretendo estampar em minha pele o que escrevo e vivo, sempre em movimento.


Confira a seguir trechos inédito da peça, cedidos pela autora com exclusividade para o iG Delas

"Eu sou atriz. Desde pequena eu sou atriz. Aquela história, a adolescente que virou adulta e enriqueceu, sabe. Eu e minha mãe. Só nós. Dizem, aqui onde moro, que meu comportamento é escandaloso. Bebo, fumo, vivo por aí com minhas cigarrilhas, meu batom vermelho. Bela, desbocada e do bar. Moro num país careta, careta, não sei nem como essa pátria me pariu. Patriarcado do País de Pedra Preta, me aguenta. Isso aqui fica entre o mar, o deserto e as montanhas de algum lugar do norte.

Eu tenho um par romântico. Eu tinha um par romântico. Todo mundo torcia para que a gente fosse um casal, mas eu nunca tive lá muito interesse. Pegava? Pegava. Beijava em público? Beijava. Eu sou solteira, né? Mas tenho mais o que fazer do que me ocupar com vida de homem. Eu escrevo, tenho texto pra decorar, Marx e Federici pra ler.

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Eis que um dia, embriagada demais e aos beijos com um garçom, me meti em um barraco. Ora, me chamaram de vagabunda. Vagabunda não! Eu trabalho, porra. Ali polícia viu a chance de me prender. Escandalosa, indecente, imoral. Sempre tem foto: degradantes, uma calcinha com labinho pra cá, um peito pra lá. Logo saí, mas vieram as consequências. Adoram fofoca, né? O ser humano não vive sem fofoca.

Uma palhaçada. O cara, esse que era mesmo apaixonado por mim, também foi parar na mídia. Pobre homem, como ele, tão nobre, aceitava aquele comportamento? Ele não aguentou, mesmo não tendo nada comigo. Eu toquei o foda-se. Segui belíssima com meu comportamento escandaloso de me divertir, fumar e beber, agora escrevendo minhas peças e vivendo a minha vida nos meus bares. As putas e os companheirinhos não se importavam com minha conduta. Só que eu estava dominando os jornais. Não tava legal. Passei a beber mas e mais, fumar mais e mais. Logo passei a sofrer perseguição tanto de meu ex-par, inconformado com a imagem de corno, quanto do governo, que se desenhava para ser uma ditadura e se opunha muito a minhas posições comunistas e feministas. Federici não era bem-vinda.

O ex-par insiste em aparecer em lugares onde eu estava sozinha fumando, bebendo, estudando novos papéis e fazendo os pés e as mãos (sempre vermelho) para jogar em minha cara que estava com outras mulheres famosas. E eu com isso? Os boatos de que eu tinha outros amantes famosos (tinha) estampavam os jornais e deliciavam os tabloides. Insuportável.

Resolvi viajar para Nova York e depois Los Angeles, onde conheci um homem por quem me apaixonei. Ele era produtor, resolvia minha vida, ninguém sabia quem éramos e a vida foi boa. Só que eu resolvi vir pra casa. Aquele ex-par romântico uó, mesmo recém-casado com uma jovem 20 anos mais nova, quis me matar e matar meu cara. Um homem negro, como eu ousava? Infelizmente tive que quebrar a cara dele e uma cadeira em suas costas. Eu acho é pouco.
Fui exposta novamente como a mulher que arruinou dois homens.

Os convites de filme e peças rareavam, pois o tempo passou, eu falava demais, tinha me politizado demais e então fiquei velha demais. Passei dos 30, um pecado mortal para mulheres. Meu cara não aguentou a pressão da minha cara na mídia sendo detonada - e ele junto - e retornou aos Estados Unidos, me deixando com o nosso filho. Estavam usando contra mim a mais antiga arma contra mulheres, a desmoralização e o argumento da loucura. Louca. Ela é louca. Olha o que ela faz? Louca. Não é de bem. Comecei a fumar mais e beber mais, ninguém ia me controlar. Só que acabei perdendo o controle também com as pílulas. Ninguém resiste sozinho. Minha situação era deplorável. Eu ainda tinha dinheiro, mas estava muito, muito infeliz. O puro suco do amargor. Minha mãe sempre esteve ao meu lado, mas começou a ter dúvidas sobre se eu seria capaz de cuidar de mim e do meu filho. Eu não estava muito capaz, não, mas fazia o meu melhor. Meu filho foi xingado na escola por um de seus colegas racistas, filhos de racistas, a mãe foi defender o menino dizendo que ELE ESTAVA CERTO E QUE A CRIANÇA ERA IMUNDA e eu desci o cacete naquela imbecil. Fui presa de novo, conforme queria, tanto. E aí foi ladeira abaixo. Não consegui sair. Não tinha fiança. Me queriam louca e me puseram louca. Me internaram enquanto eu surtava. Quebrei tudo. Chorei muito. Gritei e fui punida. Levei choque. Me medicaram errado. Pra me calar mesmo, pra eu parar de encher o saco. Meu filho foi morar com o pai e a nova esposa. Era pra ser meu fim.


Saí, mas dopada. Por sorte achei um psiquiatra bom. Ele me diagnosticou como bipolar. Tipo 1. Um tipo que quase não deprime. Bem medicada, consegui me reerguer e voltar para casa. Era uma medicação que me deixava estável, com o transtorno inerte e sentimentos menos à flor da pele. Mas não esqueci o que passei. Tive medo de não ser mais boa atriz, de não saber mais escrever. Mas não era nada disso. E eu também não virei uma mulher decente como eles queriam. Eu era eu que era eu. Comecei assim: o que eu passei. O que outras mulheres que estavam lá passaram. Abuso. Excesso de medicamento. Silenciamento.

Escrevi um livro. Mandei pra um conhecido, que resolveu publicar. Não sabia se tinha grande potencial depois de todas as porradas da vida. Meu livro vendeu. Outras mulheres iam aparecendo e as vozes delas ecoavam. Meu livro vendeu mais. "Tava sumida, né?" Não, estava encarcerada. Meu filho voltou. Meu livro virou filme. Eu atuei nele. Medicada linda e livre. Às vezes a gente ganha a batalha, mas a guerra é até morrer".

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