Média grave. Segundo Anuário Brasil de Segurança Pública, a cada hora, seis mulheres foram estupradas no país
Redação João Bidu
Média grave. Segundo Anuário Brasil de Segurança Pública, a cada hora, seis mulheres foram estupradas no país

A cada hora, seis meninas ou mulheres foram estupradas no ano passado no Brasil. A triste média, apresentada há poucos dias no 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, inclui vítimas que precisaram lidar — além do trauma do episódio — com gestações indesejadas, desinformação sobre caminhos legais de encaminhamento da gravidez, preconceito e exclusão de seus núcleos sociais.

Casos recentes como o da menina de 11 anos de Santa Catarina, cujo aborto legal encontrou barreiras para ser executado, e o da atriz Klara Castanho, de 21 anos, vítima de ataques nas redes sociais por entregar à adoção um bebê fruto de estupro, são exemplos de uma realidade que avança fora dos holofotes.

"Falta informação para essas mulheres, além do serviço de abortamento legal. É preciso dizer que se deve buscar o serviço de saúde imediatamente após o estupro, que se busque profilaxia para ISTs e que tomem a chamada pílula do dia seguinte", diz a psicóloga Daniela Pedroso, que acompanha vítimas de estupro, elegíveis ao aborto legal. "Essas mulheres relatam sentir vergonha e culpa. Demoram para chegar no serviço de atendimento, porque se fecham e acham que vão esquecer, que não terão que lidar com esse episódio."

Assim como relata Daniela, mulheres vítimas de violência sexual disseram ao GLOBO ter vivido uma rotina de vergonha e medo ao encarar o tema envolto de preconceitos. A estudante universitária Rafaela (nome fictício), de 29 anos, conta que teve coragem de relatar a violência e que estava grávida apenas para uma professora. Para ter acesso ao aborto, que lhe é garantido por lei, contou com a ajuda do grupo Milhas Pela Vida de Mulheres, que localizou um hospital estadual em Feira de Santana, na Bahia, onde ela mora.

"Uma médica que me atendeu quis saber detalhes do episódio. Deixou claro que era contra o aborto e insinuou que eu não havia sido violentada, pois eu tinha ido até a casa do agressor", diz Rafaela, que fez o procedimento neste ano e conta que tomou a pílula do dia seguinte, mas não denunciou o agressor por ser uma pessoa bem relacionada na cidade em que vive.

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"Vi meus sonhos indo por água abaixo. Não tive estrutura [para manter a gravidez]".

Professor do curso de medicina da Universidade de Pernambuco, Olímpio Barbosa, que também dirigiu um centro de referência para interrupção de gestações de forma legalizada, em Recife, diz que há falta de preparo nos hospitais para receber as vítimas. Ele já ouviu relatos de algumas que chegaram ao pré-natal revelando que a gestação era fruto de estupro e foram chamadas de “mãezinhas”.

"Elas chegam ao centro de saúde destruídas. Sofrem violência e, por vezes, nem têm consciência que são vítimas. Algumas nem sabem o que é estupro", diz Barbosa.

A empregada doméstica Juliana (nome fictício), de 25 anos, de Bento Gonçalves (RS) foi estuprada por um primo de uma amiga em uma festa, quando ainda tinha 13 anos. Seria elegível ao aborto legal, mas na época não foi informada dessa possibilidade.

"Meus pais acreditam que a culpa sempre é da mulher e foram duros comigo. Fui mãe nova, um baque, percebi que não tinha mais vida", lembra.

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Após duas outras gestações, ela criou o difícil vínculo maternal com a primogênita:

"Amo minha filha, mas, se eu pudesse ter essa decisão, não teria tido essa gravidez. Não estudei, e quando você engravida na adolescência não tem mais amigos."

O preconceito também marcou Marli, de 43 anos. Ela engravidou aos 13 de um jovem de 15 anos, com quem tinha uma relação afetiva. Ela não chama o caso de estupro, pois acredita que tratava-se de uma relação consentida — para a lei, porém, qualquer relação sexual abaixo de 14 anos é considerada “estupro de vulnerável” e, portanto, passível ao aborto legal.

"Uma menina grávida tão nova, mesmo sem querer, é como se assinasse um atestado de ninfeta. Deixam de ver como criança e passam a ver como ameaça", afirma Marli, cuja filha foi criada como sua irmã até o fim da infância.

Especialistas de Varas da Infância e Adolescência explicam que o encaminhamento para a adoção, opção de Klara Castanho, é um direito que se estende a todas as mulheres, não só a vítimas de estupro. E, diferentemente do que ocorreu com a atriz, as que optam por esse desfecho da gestação têm direito legal ao sigilo.

Reflexos do machismo

A advogada Ana Paula Braga, membro da Comissão Mulher Advogada da OAB-SP, diz que ainda é preciso avançar muito na divulgação do que são direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Ela diz ainda que é preciso informar sobre a existência de estupro marital (quando o companheiro força a relação) ou quando, durante a atividade sexual, o parceiro retira o preservativo, expondo a mulher ao risco de gestação ou contaminação de doenças sexualmente transmissíveis. Já a advogada Maíra Récchia, da Rede Feminista de Juristas, diz que a questão reflete o machismo do país.

"Os direitos garantidos não podem ser ameaçados por razões ideológicas".

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