Câncer nem sempre impede a gestação
Um momento que deveria ser de alegria se transformou no pior pesadelo da professora Márcia Barros. Quando ela finalmente conseguiu engravidar do segundo filho, aos 37 anos, os exames pré-natais revelaram um tumor no seio direito.
Três médicos disseram que a gestação representava um risco muito alto de vida, por isso o melhor a fazer seria um aborto. “Já tinha passado por um aborto espontâneo e estava com medo de não conseguir engravidar outra vez. Não queria abrir mão do meu filho”, recorda.
Márcia enfrentava um verdadeiro dilema. Ela poderia postergar o tratamento para depois do parto, mas os mesmos hormônios necessários à gestação também alimentavam o tumor e faziam ele crescer mais rápido.
Por outro lado, ela poderia abortar para combater o câncer, mas havia o risco dela nunca mais conseguir engravidar. “Isso assustava os médicos. Ninguém queria cuidar de mim”, afirma.
Somente o quarto especialista que ela procurou, o obstetra e mastologista Waldemir Rezende, deu alguma esperança de sucesso para um tratamento combinado com a gestação. “Ele retirou meu seio doente no terceiro mês de gestação e depois começamos a quimioterapia”, lembra a professora.
O remédio certo
Quando recebeu a paciente, Rezende trabalhava no Hospital das Clínicas de São Paulo, onde surgiam cerca de dez novos casos de gestantes com câncer por mês. O médico conta que o tratamento destes pacientes não é simples, por isso muitos outros especialistas acabam recomendando o aborto. “Mas a maioria dos cânceres pode ser tratável”, afirma.
Os mais delicados são os tumores alimentados pelos hormônios femininos, caso do câncer de mama. “A solução é retirar o tumor”, aponta o médico, que hoje trabalha no Hospital Santa Catarina e escreve artigos para o site Atmosfera Feminina .
Já existem anestesias para a operação que podem ser usadas em pacientes grávidas. Contra a dor pós-operatória ou do próprio câncer, a mulher pode usar medicamentos opióides, como morfina e codeína.
Contudo, todo antiinflamatório deve ser evitado. “Eles podem atacar placenta, rins e coração do feto”, alerta Rezende. Também é preciso ter cuidado com os antibióticos. Devem ser evitados os aminoglicosídeos, pois eles representam risco de surdez para a criança. “Podem ser usados cefalosporina, ampicilina e penicilina”, afirma.
Quimio e radio
Após a cirurgia, como na maioria dos pacientes com câncer, é necessário quimioterapia. “Quase todo quimioterápico pode ser usado em gestantes. Basta esperar a 12ª semana de gravidez, quando os órgãos do feto se formam”, afirma.
O problema é a radioterapia. “Ela só deve ser usada em último caso, porque é difícil conter a radiação”, explica o mastologista. O bebê pode até nascer saudável, mas com sequelas que só vão se manifestar com o passar dos anos. "Existem problemas que só se manifestam depois de 20 ou 25 anos", conta o médico.
Particularidades
O grande desafio da medicina em gestantes com câncer é avaliar a situação da paciente e do tumor para adequar o tratamento da forma mais individualizada possível.
Márcia, a personagem no início da reportagem, passou por uma cirurgia radical, com a retirada total do seio direito e ainda foi submetida a um tratamento pesado com quimioterápicos. “Perdi todo o cabelo e tive que usar peruca”, recorda ela.
Mas a investida teve sucesso. Ela conseguiu ter o filho, hoje com dois anos e oito meses, mas precisou ter o ovário removido durante o parto. “O médico suspeitava que poderia haver metástase lá. E exames posteriores mostraram que realmente havia”, afirma.
O tumor de ovário é considerado mais complicado durante a gestação. Quando diagnosticado cedo, Rezende recomenda tirar parte do órgão durante a gravidez e, depois, o restante no parto.
Gravidez inesperada
O caso da professora Marileide Franzine, de 44 anos, surpreende por ser o inverso do que normalmente acontece. Enquanto as gestantes normalmente descobrem o câncer no pré-natal, Marileide descobriu a gravidez quando se preparava para a quimioterapia.
“Já tinha passado por duas cirurgias para retirar um tumor do seio direito e estava fazendo exames para começar a quimioterapia”, recorda ela.
Por mais que quisesse um filho, a professora não acreditava que a gestação fosse vingar. “Tinha passado por três abortos espontâneos até os 31 anos. Não achei que aos 40 anos e fazendo quimioterapia fosse conseguir levar a gestação até o final”, admite ela.
E o tratamento não foi fácil. Desde a primeira sessão de quimioterapia, Marileide começou a ter febre. “Era todo dia. De manhã, à tarde e à noite. Tive febre por um ano. Até minha mãe adoeceu de me ver tão mal”, conta.
Mas o desejo de ter um filho lhe dava forças. “Estava vendo meu filho evoluir bem e isso me dava esperança de poder tê-lo, da gravidez dar certo”, conta. Rezende, que também foi médico de Marileide, explica que a motivação da mãe tem efeito comprovado na recuperação e na evolução do tratamento contra o câncer.
Hoje, a professora se recuperou do câncer e voltou ao trabalho. Seu filho, Gabriel Vinícius, está com 3 anos. “E eu estou aqui, contando história”, comemora.
Outros desafios
Em outra paciente, conta o médico, havia risco dela sofrer uma anemia aguda após a cirurgia para remoção de um tumor ósseo na perna. “Isso poderia causar descolamento da placenta e sequelas no sistema nervoso central do bebê”, explica.
Por isso, o médico propôs à paciente fazer uma transfusão de sangue antes da cirurgia. E deu certo. Isso evitou a anemia e ainda permitiu um parto normal. "Ela estava cheia de pinos na perna, mas conseguiu fazer um parto normal”, recorda.
O câncer de tireóide, por exemplo, é um dos mais simples de ser tratado. Basta uma cirurgia para retirar a glândula e, depois, a paciente vai precisar dos hormônios artificiais, sem mais riscos para a gestação.
Diagnóstico prejudicado
Para o mastologista José Roberto Filassi, do Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp), a gravidez pode prejudicar o diagnóstico do câncer de mama. “Como a gestação pode causar um certo enrijecimento da mama, alguns tumores sensíveis ao toque passam despercebidos pelo médico, que acha que aquilo é normal”, alerta o especialista.
Ele conta que a maioria dos diagnósticos é feita entre o quarto e quinto mês da gestação. E isso em pacientes jovens. “Elas têm entre 32 e 34 anos, em média, mas já atendemos pacientes com 22 e 19 anos”, afirma. “Esse número está dentro da média mundial para países desenvolvidos”, acrescenta.
Uma solução para isso, recomenda o médico, é fazer exames para detectar câncer de mama sempre que houver qualquer suspeita de alterações nos seios. Se a paciente tiver histórico familiar ou outros fatores de risco, como menarca precoce, a atenção deve ser dobrada.