Anorexia na maturidade
Quando meninas, elas assistiram a cantora superstar da época morrer de uma doença ainda desconhecida para o público. Karen Carpenter, espécie de “Sandy” do final dos anos 70, recordista de vendas de discos em parceria com o irmão na dupla The Carpenters, nunca mais cantou hits como Close to You por causa da anorexia nervosa. Aos 33 anos, em 1983, o coração da estrela internacional parou de bater e o corpo definhado pela magreza excessiva foi apontado como causa da morte repentina.
As fãs de Karen Carpenter cresceram, acompanharam outras “musas teens” adoecerem do mesmo problema e hoje, mais velhas, são expectadoras – e alvo – de um outro lado dos transtornos alimentares, inédito até para quem sempre tratou da doença: a anorexia deixou de ser uma doença de adolescentes. Agora, também faz vítimas mais maduras.
Meninas, adultas e senhoras
A tendência de envelhecimento da anorexia nervosa – reconhecida por sintomas de distorção da imagem (muito magras que se enxergam gordas) e danos físicos e psicológicos severos – é confirmada por Liliane Kijner Kern, psiquiatra do Programa de Orientação e Atenção ao Pacientes com Transtorno Alimentar (Proata), serviço da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Ela conta que, nos últimos três anos, as consultas deixaram de ser voltadas só para meninas com idades entre 13 e 21. Hoje, informa a médica, das novas pacientes que buscam a unidade, duas em cada 10 têm mais de 40 anos. As maiores de 30 – faixa etária também considerada tardia para a manifestação do transtorno alimentar – já são quase metade dos casos, representam 40% do total.
"É muito recente. Ainda falta literatura médica até para sabermos como tratar estas pacientes" diz a especialista.
No Ambulatório de Anorexia, Bulimia e outros Transtornos Alimentares (Ambulim), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), o mesmo fenômeno foi diagnosticado: 13,5% das 289 pacientes internadas durante o ano passado por causa do distúrbio tinham passado dos 35 de idade – mas pesavam pouco mais de 20 quilos.
A explicação dos especialistas para uma parte das pacientes mais velhas adotar o esquema “dieta zero” já em uma faixa etária mais avançada é simples: elas não são adolescentes, mas continuam expostas e pressionadas por um padrão de beleza muito magro. As propagandas de xampu, hidrante e sutiã são as mesmas, independentemente da idade.
Na Espanha, segundo estudo apresentado em outubro do ano passado durante o Congresso Nacional de Organização de Idosos, foi evidenciado que até as senhoras podem ser vulneráveis à doença. Nos serviços de saúde espanhóis foi apurado que os casos de anorexia em pacientes com mais de 60 anos haviam triplicado, passando de 1,5% do total para 5% dos atendimentos.
Fatores múltiplos
Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto , 67 anos, ajuda a entender o avanço de casos de anorexia em mulheres da mesma idade. Ela nunca havia se preocupado com as curvas até os 55 de idade. Prestes a virar uma sexagenária, confrontada com o espelho, não gostou da imagem que viu. Lembrou que o manequim não era mais 38, viu que as colegas de trabalho eram mais jovens e mais magras e ainda tinha de conviver com os mistérios da menopausa e a dificuldade de manter o peso por causa dos remédios para controlar o colesterol. “Poderia ter pirado ali”, acredita.
A Heloísa que reúne os anseios de muitas mulheres de sua faixa etária é a Helô Pinheiro, a garota de Ipanema, eterna musa e ainda assim vulnerável aos desafios trazidos com o passar dos anos. Ela não caiu nas estatísticas de transtornos alimentares. Aprendeu a admirar a própria beleza, mas conta que muitas colegas de faixa etária semelhante não tiveram a mesma sorte.
Liliane, a psiquiatra da Unifesp, explica que, de fato, não é só a insatisfação com o corpo que desperta a anorexia entre as pacientes mais velhas. “O gatilho pode ser uma separação do marido, a ausência dos filhos, a sensação de estagnação no trabalho”, completa.
Vaidade fatal
Como são maiores de idade e têm renda própria, as doentes com mais de 40 conseguem ainda usar outras formas de agredir o corpo que vão além restrição alimentar. Acabam repetidas vezes nos consultórios de cirurgiões plásticos na tentativa obsessiva de mudar a forma física, pontua o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, Sebastião Guerra.
“As pacientes psiquicamente transtornadas geralmente se apresentam de forma confusa, desejando na maioria das vezes o que é considerado impossível”, alerta Guerra. Para ele, é necessário o reconhecimento deste tipo de caso por parte dos profissionais da área. Não só o bisturi, mas dietas malucas também podem deformar o corpo. Além da magreza, o resultado pode ser osteoporose, fraturas e até a morte, todas consequências associadas à anorexia nervosa.
Limite da sobrevivência
Os casos mais graves de anorexia nervosa tratados na Unifesp e no Ambulim – reúnem muitos exemplos de mulheres que chegaram até o limite da sobrevivência.
Independentemente da idade, todas que precisam passar meses nos leitos hospitalares ficam com uma penugem em volta do corpo em resposta à ausência absoluta de gordura e aos batimentos cardíacos ameaçados pela falta de peso. Fábio Salzano, psiquiatra responsável pelo atendimento do Ambulim, diz que as internações dessas pacientes são longas, por cerca de um ano – para efeitos de comparação, os dependentes químicos ficam internados, no máximo, três meses. Dos transtornos psíquicos, explica ele, a anorexia é o mais letal. “A mortalidade chega a 10% dos casos”, afirma.
“Não há o menor glamour. O preço pago é muito alto”, define a especialista da Unifesp, Liliane Kern, que diz encontrar só uma diferença entre as mais novas e as mais velhas com anorexia.
“Se para a adolescente o tratamento tem foco na família, as mais velhas só podem contar com elas mesmas. Todo o esforço de recuperação depende delas”, explica.