A filósofa que reivindica o clitóris como órgão de pensamento e revolução

A filósofa francesa Catherine Malabou se dedica a estudar o clitóris – e o reivindica como um órgão de pensamento e de revolução

Foto: Lorraine Moreira
A filósofa que reivindica o clitóris como órgão de pensamento e revolução

Clitóris : esse pequeno segredo que persiste , resiste , incomoda a consciência e fere o calcanhar é um órgão , o único, que serve apenas para o prazer — logo, “para nada”. “O prazer ainda é censurado a milhões de mulheres, porque o clitóris ainda é, física e psiquicamente, o órgão do prazer censurado ”, escreve a filósofa franco-argelina Catherine Malabou em seu livro O prazer censurado: clitóris e pensamento (Editora UBU), recém-lançado no Brasil.

Malabou é professora de filosofia na Universidade de Kingston, em Londres, e na Universidade da Califórnia, em Irvine, e é uma estudiosa do clitóris — antes, já havia se dedicado a pesquisar as relações entre plasticidade cerebral, neurociências e filosofia. Neste novo livro, ela investiga a ausência desse órgão no discurso filosófico, médico, artístico e mitológico.

Desde o primeiro significado de clitóris, associado a uma “pedrinha no sapato que incomoda o caminhar e atormenta o espírito”, até a sua omissão nos manuais de anatomia e a falha da psicanálise ao descrevê-lo como “um pênis atrofiado”, Malabou constrói um panorama abrangente de como o prazer feminino foi sistematicamente ignorado — quando não apagado — ao longo dos séculos.

Ela também aborda problemáticas contemporâneas, como questões queer , mutilações genitais e a desigualdade entre o falo e o clitóris , que persiste na sociedade, reivindicando os significados desse órgão dotado de mais de 10 mil terminações nervosas.

Assim, Malabou se destaca como pioneira ao tornar o clitóris visível como um órgão de prazer, pensamento e, acima de tudo, de liberdade e autonomia. Conversamos com ela de Marselha, na França.

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Catherine Malabou fala sobre a teoria de que o clitóris é um órgão revolucionário

CLAUDIA: No seu livro, você descreve que o prazer da mulher nunca foi mencionado na filosofia e que falar do clitóris é torná-lo visível. Como surgiu esse projeto de investigação sobre o prazer feminino?

Catherine Malabou: O que desencadeou a pesquisa foi o filme Ninfomaníaca (2013), do Lars von Trier. Eu nunca tinha refletido sobre o que era a ninfomania . Na verdade, descobri que isso não existia, que era uma invenção dos psicólogos e o que chamávamos de ninfomaníacas eram simplesmente as mulheres que querem sentir prazer.

E eu passei a me perguntar por que uma mulher que busca o prazer é considerada uma doente. “ Nymphomane ” significa que ela tem os lábios do seu órgão sexual muito grandes. Então, me perguntei por que essa busca pelo prazer era compreendida como uma doença, como uma patologia.

CLAUDIA: Você encontrou resistência ao abordar o tema?

Catherine Malabou: Sim, muita! Entre meus colegas, sobretudo os homens, que achavam que o prazer feminino era um assunto vulgar, que era um assunto “sujo” e que não podia ser um tema filosófico sério. Eu respondi que toda a filosofia estava organizada em torno do falo masculino. Quando compreendemos bem algo, dizemos que estamos sendo rigorosos, seja a retidão moral, seja todos os privilégios dados à integridade, à ereção…

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Disse a eles que isso parecia normal, mas questionar o prazer feminino parecia anormal. Também falei sobre a psicanálise, dizendo: como vocês entendem o fato de Freud não dar nenhum valor ao clitóris? Que o vê como um falo castrado? Respondi dessa forma, não sei se os convenci. Então, sim, há resistências.

CLAUDIA: Na França, o clitóris apareceu nos livros escolares pela primeira vez apenas em 2019. No Brasil, principalmente nos últimos anos, a educação sexual se tornou um tabu ainda maior. Por que em momentos de mais conservadorismo o prazer é negado?

Catherine Malabou: De maneira geral, o prazer é sempre político. O prazer, especialmente o sexual, não é apenas um estado de êxtase — é também uma maneira de resistir. O prazer sexual, fundamentalmente, tende a escapar das ordens, da ditadura, da rigidez. É uma maneira de escapar. Então, o que desagrada é seu aspecto político.

Se você assistir a filmes, longas sobre o fascismo, por exemplo, filmes de Paolo Pasolini como Salò ou O s 120 dias de Sodoma (1975), vai ver que o prazer, para os fascistas é, antes de tudo, a crueldade. O prazer é impedir o prazer, entende? Então, há algo nele, como uma resistência política. Ainda mais no feminino.

O grande problema com o clitóris é que a mulher tem dois órgãos sexuais, a vagina e o clitóris, que são separados anatômica e funcionalmente. E a mulher pode ter um prazer clitoridiano diferente da reprodução; a mulher pode gozar sem necessariamente se reproduzir. Acho que isso é algo que incomoda muito, que é inadmissível para os conservadores.

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CLAUDIA: Uma pesquisa realizada entre diferentes universidades americanas e publicada no periódico Archives of Sexual Behavior, em 2018, mostrou que as mulheres heterossexuais são o grupo que atinge o orgasmo com menos frequência. Você acha que isso é, em parte, o resultado da falta de conhecimento do clitóris?

Catherine Malabou: Sim, completamente. Ao escrever o livro, descobri que muitas mulheres nem sabem que têm um clitóris. Não sabem para que serve, não sabem o que fazer com ele, e, além disso, são culpabilizadas por isso. No fim, a mulher acaba sendo culpada por não sentir prazer. Há muito sobre isso em Freud, que diz que se uma mulher não sente prazer na penetração, é porque ela é infantil, porque ela não é madura. Então, sim, acredito que há toda uma educação a ser feita.

CLAUDIA: E você acha que vivemos em um momento de maior censura ou de apagamento do clitóris e do prazer?

Catherine Malabou: Eu acredito que estamos em um momento em que essa questão é muito, muito polêmica. Por um lado, há um reconhecimento e uma aceitação desse prazer. Por exemplo, temos livros que estão sendo lançados contra a penetração, como uma espécie de ampliação da categoria de prazer. E, por outro lado, há uma ofensiva fascista muito forte, especialmente se olharmos para as leis contra o aborto, se olharmos para tudo o que nega a liberdade das mulheres. Estamos com um pé em cada um deles.

Clitóris é esquecido, porque o prazer feminino é perigoso, segundo Catherine Malabou Juliadu/Abril Branded Content/Getty Images

CLAUDIA: Seu trabalho anterior focava na relação entre filosofia e plasticidade cerebral. Como a conexão entre o clitóris e o cérebro pode ajudar a compreender melhor a experiência do prazer feminino?

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Catherine Malabou: Me interessei pela filosofia em relação a órgãos do corpo que não tinham sido tratados filosoficamente. Antes da segunda metade do século XX, ninguém havia se interessado pelo cérebro em si, mas sim pelo espírito e pela alma — mas não pelo cérebro. Para responder à sua pergunta: agora sabemos que o orgasmo é um fenômeno cerebral. Ele está envolvido 100% na experiência do prazer. É o que chamamos de cérebro emocional, e todos os circuitos da dopamina, etc., são ativados na relação sexual. Há uma comunicação direta entre os dois órgãos.

CLAUDIA: Um exercício um pouco utópico, mas, na sua opinião, qual seria o impacto na nossa sociedade de uma maior tomada de consciência, vivência do prazer feminino?

Catherine Malabou: Seria um sonho, um grande sonho! Talvez seria uma forma de realização política, que eu sei que o termo anarquia é polêmico. Mas para mim seria uma sociedade um pouco sem dominação, uma forma de liberdade política onde haveria outros relacionamentos além dos de comando e obediência. O problema é que muitas mulheres, infelizmente, muitas mulheres no poder se comportam como homens, então ainda haveria toda uma educação a ser feita nesse sentido.

CLAUDIA: O que você gostaria que os leitores, que não são necessariamente próximos da filosofia, aprendessem ou refletissem sobre o prazer feminino ao ler seu livro?

Catherine Malabou: Gostaria que entendessem que é muito importante explorar o próprio corpo, aprender sobre ele como se aprende um idioma. No fundo, é uma experiência pessoal, difícil, e que leva tempo para conhecer o próprio corpo. Mas é algo que deve ser feito e que ninguém vai nos ensinar como fazer isso.

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