Mística. Assim era a experiência de comer o menu degustação do Clandestino. O projeto de Bel Coelho começou como um laboratório fechado para amigos e logo ganhou uma agenda semanal no extinto Dui. Foi ali, no piso superior do primeiro restaurante da chef, que provei, em 2011, a complexa mistura de ingredientes nacionais proposta por Bel. Ficou marcada a apresentação artística dos pratos, a combinação de sabores fora do convencional (mas deliciosa) e a sequência de vinhos harmonizados — responsável por borrar um tanto a memória mais racional da experiência, fato.
Migrado para um espaço no Beco do Batman, que funcionava de modo sazonal na Vila Madalena , o Clandestino seguiu impactando uma legião de paladares até a pandemia, quando fechou as portas. Agora, reabre em novo endereço paulistano, no mesmo bairro. Só que rebatizado com uma letrinha “a” que faz toda a diferença: Clandestina . “Surgiu esse ponto e quando eu vi que ia ter que abrir direto, não ia ser naquele esquema de uma semana por mês, falei que não queria mais fazer menu degustação”, lembra. “Nada contra, eu gosto, mas tenho mais dificuldade atualmente de comer um inteiro. Descobri que a coisa que mais gosto atualmente de fazer, gastronomicamente, é ficar comendo várias coisas, compartilhando. Daí não fazia sentido chamar de Clandestino. Então, vamos mudar o gênero.”
Ativista da alimentação saudável envolvida em diversos movimentos sociais, a chef de 45 anos reflete sobre o peso simbólico da mudança, jamais parando no raso: “Meio machista isso até, mas eu acho que a mulher — seja pela cultura ou biologia, mas acho que é cultural — é mais coletivista, sim”. Na sequência, começa a destacar como a história comprova a competência feminina em posições de liderança. “Não estou dizendo que não tem mulher egoísta ou tirana, mas há os exemplos. Teve a ver com isso. O próximo vai ser Clandestine ou Clandestinx”, diverte-se.
A a utoconfiança e tranquilidade para dividir suas convicções e abraçar posturas disruptivas veio com o tempo, como é para muitas mulheres. Tanto a dedicação ao autoconhecimento quanto as trocas com seus pares ajudaram a desenhar a complexidade dos paradigmas aos quais estamos submetidas. “ Na profissão, a gente tem que se esforçar pelo menos 10 vezes mais do que um homem para chegar no mesmo lugar . E o que eu vejo de homem impostor, falando com uma autoconfiança que eu ou outra mulher não consigo, é sintomático.” A consciência da desigualdade de condições reafirmou em Bel a vontade de fazer diferente : “A gente não precisa reproduzir modelos masculinos de competir. Muita mulher precisou passar pano para homem, eu também, todo mundo. Para subir, a gente precisou dizer muito ‘sim’ para coisas que a gente não queria, inclusive assédio ”.
No universo particular do Clandestina, algumas regras de Bel buscam garantir a harmonia entre sonho e realidade. As reservas para o jantar são feitas em dois turnos, o que significa que todo mundo tem horário para chegar e para sair. “Tem gente que aceita bem, tem gente que aceita muito mal. O brasileiro é muito mimado, muito colonialista mesmo. É para o negócio ficar de pé, financeiramente, e também para o funcionário poder ir embora para casa.” Dá vontade de ficar ali eternamente provando pratos e drinques um atrás do outro? Dá. Mas as duas horas propostas são mais do que suficientes para ter uma refeição inesquecível.
O menu deixa de lado a tradicional divisão de entradas e pratos principais e elenca porções menores para dividir no centro da mesa. Já são hits entre o público o repolho assado com missô de cacau e molho picante de castanha-de-caju e um reconfortante arroz de costela de gado curraleiro com jiló frito na farinha de milho. Mas não deixe de provar o tempurá de pimenta-de-cheiro com beiju, recheado de camarão ao molho de bacuri, picante na medida. A brincadeira de texturas e sabores brasileiros segue em abordagens inusitadas para um mesmo ingrediente, como o tucupi. Ele aparece num molho ponzu com ervas frescas sobre o tiradito de melancia ou no guioza de pato, perfumado por um azeite de pimentas nativas. Para ficar satisfeito, um casal deve pedir de cinco a seis sugestões.
Os drinques da casa, como um caju amigo de cachaça branca com gim e suco da fruta com cumaru, são uma delícia! Mas quem preferir evitar o álcool não deixará de ser surpreendido por bebidas suaves. O suco de pêra com coentro (sim, o polêmico) tem um perfume inconfundível que pode causar estranhamento num primeiro momento. Basta um gole, porém, para entender a perfeição da combinação gelada.
A proposta é surpreender, sem perder de vista o caráter reconfortante da vivência. “Se você vai ao restaurante, está gastando esse dinheiro, você precisa sair restaurado. Comida , para mim, é para deixar feliz .” No equilíbrio entre seus múltiplos papéis, da maternidade ao comando de seu outro restaurante, o Cuia, no Copan, Bel Coelho se desdobra para estar atenta a todos os aspectos do negócio, da decoração ao descarte de resíduos. “Ao olhar a minha história, ela tem coerência”, afirma, segura de si. Experimentar o Clandestina nunca foi tão legítimo.
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