Com a volta do Talibã ao poder no Afeganistão, muitas pessoas manifestaram medo sobre o futuro do país diante de um regime liderado pelo grupo . O receio, contudo, não é à toa. Durante os anos em que governou o Afeganistão, de 1996 a 2001, o Talibã impôs uma série de leis e regras que violavam o direito das mulheres , como a obrigatoriedade do uso da burca e a proibição de jovens e adultas de frequentarem escolas e universidades.
A postura radical do grupo e sua interpretação distorcida da Sharia (lei islâmica) volta a ameaçar os direitos conquistados pelas afegãs nas últimas duas décadas. No entanto, na tentativa de se manifestarem contra o Talibã e defenderem as mulheres nas redes sociais, muitas pessoas adotam uma postura preconceituosa para com a religião islâmica e resumem sua crítica e problematização somente ao uso da burca. Sendo que, na verdade, o traje vai muito além do grupo extremista.
Francirosy Barbosa, antropóloga e professora da Universidade de São Paulo, explica que, de modo geral, as vestimentas são construídas culturalmente. Ela comenta que o niqab, por exemplo, era usado pelas esposas do profeta Maomé, ou Mohamed; dessa forma, algumas mulheres entendem que estar de niqab é estar como as mulheres do profeta. Assim, "tem toda uma questão cultural e religiosa. O que é pedido [no Alcorão] é 'cubra o seu cabelo'. Se você vai pro Irã a moda é de um jeito, na Turquia é outro, no Afeganistão é outro, no Brasil é outro", a professora da USP observa. "Isso tem a ver com a cultura, com o lugar, com o entendimento, com a interpretação, com as escolas de jurisprudência."
Iris Cajé, de 33 anos, concorda com a antropóloga ao afirmar que o uso dessas vestimentas está muito associado à região onde cada mulher vive. Brasileira, natural de Alagoas, e muçulmana convertida, ela mora há quase 7 anos em Meca, na Arábia Saudita, com seu marido e filhos.
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Ela também explica que apesar do uso de roupas mais modestas e do véu ser previsto no Alcorão, é uma escolha da mulher usá-lo ou não. "No fim das contas, quem vai ter que lidar com isso, é ela", Iris, que usa seu perfil no Instagram, o Vida Nas Arábias, para falar sobre sua experiência na Arábia Saudita, pontua.
A criadora de conteúdo Fatima Cheaitou, de 23 anos, argumenta que "o que muita gente acaba confundindo é que se algo é obrigatório, a gente usa por obrigação. Não, nós temos livre arbítrio. Então assim, é um dos deveres da mulher muçulmana, mas, ao mesmo tempo, todos nós temos o livre arbítrio". Desse modo, ela ainda lembra que quando algo é feito por obrigação, esse ato perde o sentido.
Ver essa foto no InstagramUma publicação compartilhada por Fatima Cheaitou 𖧹 Fala, Fatuma (@falafatuma)
Nascida em Salvador, Bahia, hoje Fatima vive com a família no Líbano, país natal de seus pais, e usa seu canal no Youtube, o Fala Fatuma, e seu perfil no Instagram para quebrar estereótipos sobre a religião islâmica. Sobre o uso do hijab, ela diz que se sente empoderada usando o véu. "Ele realmente me empodera, dá uma sensação de poder, apesar de todos esses comentários islamofóbicos, apesar de tudo isso que é difícil, eu uso porque eu quero, eu uso porque é pra Deus, não é pra homem, não é pra minha mãe, não é pro meu pai, não é pra ninguém", destaca. "É uma coisa muito poderosa de fé."
Desse modo, Fatima, assim como Iris, faz questão de ressaltar a importância de diferenciarmos cultura, política e religião. "A religião islâmica não vai obrigar ou impor. Quando alguém está impondo algo pra você, acaba sendo um pecado. Você não pode impor algo a alguém. Se a minha religião me deu o livre arbítrio, quem você acha que é pra tirar meu livre arbítrio?", pondera.
E é justamente aí em que mora o perigo.
A paulista Fabiola Oliveira, de 33 anos, que também usa seu perfil no Instagram para falar sobre islamismo, comenta sobre a necessidade de trazer contexto para a conversa. "A gente tem uma ideia no senso comum de que é tudo igual, tudo a mesma coisa, tudo terrorista. São contextos sociais diferentes, governos diferentes", ela diz.
Fabiola explica que véus e indumentárias, como a burca, já eram utilizadas muito antes do Talibã em diversas nações - e nunca associadas à opressão das mulheres, mas sim à fé e até mesmo status social. Contudo, com a ascensão de governos patriarcais e totalitários, ocorreu uma instrumentalização da burca, que tira a liberdade de escolha das mulheres.
Assim, para ela, a problematização dos grupos extremistas não deve ser sobre os trajes característicos da religião islâmica já que se tratam de conflitos geopolíticos multifacetados. "Liberdade é sobre direitos de existir naquela sociedade, garantir a minha emancipação de fato. E a libertação das mulheres não está nas roupas. Ser mulher, com burca ou sem burca, a gente tem medo desse sistema que nos oprime", Fabiola finaliza.
Abaixo, entenda a diferença entre as principais vestimentas femininas da religião muçulmana .
Hijab
Hijab é um termo cujo significado literal tem a ver com barreira/ cobertura/ cortina. Mas a palavra se popularizou e hoje é usada para se referir ao véu islâmico, que cobre cabeça, cabelo, orelhas e pescoço.
Vale mencionar que há diferentes tipos de hijab, como a shayla, dupatta, esarp e tudung, por isso, ele pode ser usado de formas e amarrações distintas ao redor do mundo. Além disso, o hijab não é somente o lenço, uma vez que também está relacionado com uma forma mais modesta de se vestir e de se portar, valendo tanto para homens quanto para mulheres.
Apesar de cobrir os cabelos ser um dever e obrigação na religião muçulmana, o uso do hijab é uma escolha de cada mulher.
Chador
Muito usado no Irã, o chador, ou xador, é um tecido longo que é colocado sobre a cabeça, cobrindo todo o corpo e deixando apenas o rosto à mostra. Normalmente, as mulheres mantêm o chador fechado segurando-o abaixo do pescoço com as mãos.
De origem persa, o chador normalmente é preto, mas também pode ser colorido e estampado.
Niqab
O niqab é uma peça que cobre o rosto, deixando apenas os olhos visíveis. Mais comum na Arábia Saudita, algumas mulheres também vestem luvas, cobrindo as mãos, ao usarem o niqab.
Em alguns países da Ásia e África, há versões do niqab que deixam a testa e os olhos à mostra.
Burca
A burca é uma vestimenta, azul ou preta, que cobre todo o corpo, inclusive o rosto, Na região dos olhos, há uma tela para possibilitar a visão.
Característica do Afeganistão, e de algumas regiões do Paquistão, a burca entrou em evidência após o Talibã tomar novamente o poder no Afeganistão. Apesar da indumentária já ser utilizada há anos por mulheres de certas etnias, em sua interpretação radical da Sharia, lei islâmica, o grupo extremista obriga as mulheres a usarem a veste, tirando delas seu direito de escolha.
Mas a polêmica do traje não para aí. Seguindo o exemplo da França, alguns países da Europa, como Suíça, Bélgica e Holanda, proibiram o uso de vestes que cobrem o rosto, como a burca e o niqab, alegando que elas oprimem as mulheres. As medidas tomadas por essas nações também são amplamente condenadas por alguns grupos, uma vez que retiram o livre arbítrio de mulheres muçulmanas ao impedi-las de exercerem seu direito à religião e de tomarem suas próprias decisões quanto às suas vestimentas.
Abaya
A abaya é, basicamente, um vestido, geralmente, preto, azul ou marrom, usado principalmente por mulheres do Golfo Pérsico. Muitas mulheres usam a abaya com o véu ou com o véu e niqab.