A marca Az Marias, que se denomina subversiva, leva ao centro da São Paulo Fashion Week um protesto urgente em prol da sustentabilidade por meio do uso do cânhamo, uma espécie de cannabis sativa usada na produção têxtil. Nesta sexta-feira (18), no Teatro Oficina, a marca apresenta o último ato da coleção "Florescer", batizado de Éter.
Dividida em cinco elementos, a coleção de Az Marias chega ao fim mesclando conceitos mitológicos e afro-brasileiros. Para os gregos, o Éter representava a substância celestial, carregada de simbologias subjetivas. Essa ideia é combinada ao Orí, figura de enorme representatividade afro-religiosa, que simboliza o guardião do destino.
Em pouco mais de 30 looks, a marca apresenta uma fusão de elementos futuristas, contemporâneos e ancestrais, incorporando estampas crioulas que remetem às tradições e culturas afro-brasileiras, celebrando a diversidade dos corpos e, principalmente, exaltando a figura feminina.
O destaque da marca é o protesto pela sustentabilidade no mundo da moda. É através do cânhamo, uma espécie de cannabis capaz de ser transformada em fibras têxteis, que Az Marias reivindica a responsabilidade ecológica e propõe diálogos que confrontam o racismo e tabus.
Em entrevista ao iG Delas, a diretora criativa Cintia Felix explica a reivindicação socioambiental que será levada à São Paulo Fashion Week N58. "Nós nunca deixamos de estar comprometidos com o que acreditamos, seja abrindo narrativas e diálogos, quando trazemos tecidos de cânhamo, por exemplo, para que a gente fale com a indústria que existe essa matéria-prima e que pode ser uma alternativa sustentável a curto, médio e longo prazo. Mas, neste último caso, ainda não se quer falar sobre isso, porque estamos muito mais preocupados em encarcerar os homens pretos por conta da maconha. É nesse lugar de profundidade, de pesquisa e de discussão que Az Marias se propõe a se colocar como uma marca que fala de impacto socioambiental."
Além da sustentabilidade, a marca se inspira e resgata as influências afro-brasileiras e dos povos originários. A ideia é levar estampas que refletem a ancestralidade desses povos. De acordo com a diretora criativa, o tema afro-religioso está intrínseco ao seu trabalho na moda e pode ser notado através das representações de orixás.
"Vocês verão muito grafismo, tanto grafismo africano de tipografia crioula quanto tipografia indígena. Bebendo dessas fontes naturais e ancestrais, e voltando para os elementos, para recontar essas histórias, todos os nossos desfiles sempre têm um orixá sendo representado e, neste em específico, o orixá se chama Orí, que é o seu orixá interno, é a sua cabeça. 'Para cada cabeça, uma sentença', 'Sua cabeça é o seu guia', todos esses provérbios populares que a comunidade preta fala bastante são sobre esse lugar do Orí, enquanto conexão ancestral, mas também terrena, com esse mundo que vivemos, com o caos social, econômico e ambiental", destaca Cintia Felix.
Confira a entrevista com Cintia Felix, diretora criativa de Az Marias:
- Como a ideia do Éter, como o quinto elemento, se relaciona com os temas abordados na coleção "Florescer"?
"Quando eu pensei em 'Florescer', eu o pensei em cinco atos. Viemos falando de uma narrativa visual, a partir dos elementos, terra, ar, fogo, água, mas a gente esquece que dentro deste sistema elementar existe uma força ânima, que somos nós, seres humanos. Estamos sempre colocando no centro disso e até entendo que estejamos nos colocando no centro, por conta de tudo que nós provocamos nestes elementos. O Florescer se enquadra dentro do AZ Marias e estamos falando de tudo de danoso que a nossa existência neste planeta causa. Então, o quinto ato, o ‘Éter’ e o quinto elemento é essa força ânima, porque para os gregos esse Éter era a força que nos deixava com aura, como seres animados, como seres místicos e mágicos que somos. Desta força essas ideias convergem na minha perspectiva para encerrar esse ato de uma forma que fizesse sentido para as minhas pesquisas e para o que eu acredito a longo prazo no meu legado".
- Quais desafios a AZ Marias enfrenta ao se comprometer com a sustentabilidade na moda, e como vocês os superam?
"Enfrentamos desafios normais de que toda empresa que opera pequeno é colocada em xeque, em escalabilidade e em números que sejam expressivos através de uma outra lente. Quando falamos de uma lente de impacto socioambiental, nesse 'one on one' ano a ano que fazemos, falamos muito mais de pessoas que impactadas pelo nosso trabalho, do que só propriamente dito os nossos números. Quando confrontamos esses dois números, eles começam a fazer sentido e continuamos a entregar o que a gente acredita".
- O desfile promete ser um momento de questionamento. Quais questões você espera que o público reflita após o evento?
"Acho que em primeiro, vocês vão ter a oportunidade de realmente entrar, submersos dentro da cabeça dos artistas. Eu estou me propondo a ter um diálogo franco com as pessoas sobre as questões que me moveram a fazer esse desfile, para que as pessoas saiam do desfile se questionando como esse processo é para nós enquanto criativos e se eles entendem todos os códigos que a gente coloca ali, todas as nossas pesquisas, angústias, sonhos, conquistas e medos. Eu quero sempre questionar o lugar das pessoas pretas, óbvio. Eu nunca vou sair desse lugar, porque é esse lugar que me traz até aqui e enquanto houver o racismo, haverá 'eu' combatendo, ele. Eu gosto, faço corro com a educação e esse também é um desfile que eu vou ter minha equipe majoritariamente, meus amigos do trabalho, professores do SENAC, então isso também é um grande desafio para nós. A gente começa a desenhar um projeto antigo que AZ Marias sempre esteve falando, que AZ Marias é uma marca escola e então hoje a gente tá levando isso um pouquinho mais a sério para a passarela do SPFW. É um desfile que é para ser subversivo, é um desfile que a gente vai continuar falando de matérias-primas, como o cânhamo. A gente quer falar também sobre esse lugar protagonizado pelo corpo feminino. Que corpo é esse que a gente quer celebrar?".
- O Teatro Oficina foi escolhido como cenário. O que essa escolha representa para vocês em relação à arte e à moda?
"O Teatro Oficina segue sendo o lugar da discussão da arte. Eu fico muito feliz de ter conseguido nesta vida, neste plano, atingir esse objetivo particular que era trabalhar no Teatro Oficina. Mais do que trabalhar dentro do teatro, trabalhar com o teatro, com as pessoas que fazem ele acontecer. Neste momento para nós é uma felicidade, porque estávamos lá em abril, quando não sabíamos se o Parque do Bixiga iria acontecer e hoje, a gente já chega neste lugar, sabendo que este espaço é o espaço do povo, espaço das pessoas e que foi preciso duas pessoas morrerem para que a gente pudesse avançar. Eu fico sempre, sempre do lado do teatro, pois teatro é cultura e a cultura move pessoas e muda vida, assim como mudou a minha, a ponto de hoje eu me tornar professora, porque através da cultura, através da arte, da moda, que esse mundo se abriu para mim".
- Como vocês têm aprendido a dialogar com novos públicos, mantendo a essência da marca?
"A gente segue aprendendo a dialogar e o SPFW faz um pouco disso com a gente. A gente sai de uma esfera muito territorial, eixo Rio x São Paulo em específico. Eu sou uma marca que nasceu no Rio de Janeiro e venho para São Paulo há seis anos e nestes mesmos seis anos a gente já chega no maior evento de moda da América Latina, sendo uma marca que está escolhendo crescer de uma forma mais sadia e respeitando os seus próprios limites, então eu acho que a gente está aprendendo a dialogar com esse público, a partir do momento que a gente se propõe a fazer o próprio 'Florescer'. É uma grande conquista, mas, ao mesmo tempo, é uma imensa responsabilidade fazer tudo isso que a gente faz, todos os desafios que a gente enfrenta, então a gente aprende nessa via, de propor narrativas, histórias, formas, jeitos de construir roupa e depois, vendo a resposta do público, vendo a própria resposta da mídia, vendo como nos inserimos em diálogos como arte, como também a cultura, que é o que a moda é, e é essa a moda que eu acredito. Eu sempre digo que a AZ Marias é um espetáculo e não um desfile de moda, porque a gente tá muito mais preocupado em ampliar o que a moda pode ser, do que só se preocupando em fazer uma roupa bonita e estética, porque a estética vai acompanhar todo o 'lifestyle' que aquela roupa vai estar inserida e eu mostro isso dentro do meu espetáculo.
- Na sua opinião, qual é o próximo passo para a indústria da moda em termos de sustentabilidade e inclusão, e como a AZ Marias se vê nesse cenário?
"Acho que a gente precisa falar das fibras de cânhamo com mais seriedade, enquanto sustentabilidade. Nós já temos estudos, com indícios que provam que o plantio ele auxilia na regeneração do solo, solo esse degradado. Partindo deste princípio, podemos ter uma recuperação do bioma natural, com o plantio da Cannabis e do cânhamo. Precisamos falar da inclusão de mais povos, fazendo essa inclusão de forma equânime. Já tivemos esse primeiro “start”, mas precisamos ir para um cenário onde todos são igualmente apresentados. E aqui, 'igualmente' são todos, mesmo! Estou falando da comunidade preta, LGBTQIAPN+, PCD, etc. Estou falando de todas as comunidades que não estão inseridas por algum motivo. Então a gente precisa repensar e é bom que a gente esteja avançando para que a gente também seja esses porta vozes e que façamos esse movimento de deixar a porta aberta para que mais colegas entrem e para que, de fato, seja esse ambiente seguro, igualitário e democrático que a gente tanto diz que a moda é".