Pais se abrem sobre crianças que desafiam padrões de gênero
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Quando CJ tinha dois anos e meio, sua mãe percebeu algo diferente. Ele preferia bonecas Barbie e fantasias de princesas aos tradicionais brinquedos de menino.
A mãe se alarmou e procurou ajuda especializada, mas decidiu não reprimir o comportamento de CJ, nem esconder a preferência do filho.
Ao contrário: levou o tema para a internet, com o blog Raising My Rainbow – Adventures in raising a slightly effeminate, possibly gay, totally fabulous son ("Criando meu arco-íris – As aventuras de criar um filho incrível, levemente afeminado, possivelmente gay"; clique aqui para ler - em inglês ).
A mãe, uma californiana que se identifica apenas como "CJ's mom", compartilha com leitores suas dúvidas e descobertas no dia a dia de CJ, uma criança que especialistas chamam de "gender non-conforming", ou seja, que não se encaixa em um estereótipo claro de gênero.
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O caso de CJ é um entre dezenas de outros pais norte-americanos que, diante de filhos que gostam de brinquedos associados ao gênero oposto ou que desde pequenos se declaram como sendo do sexo oposto, decidiram não esconder o assunto. Têm, em vez disso, vindo a público em livros, blogs e entrevistas, aumentando o debate em torno do assunto nos EUA.
Para esses pais, o objetivo é mostrar que não têm vergonha de sua prole e, sobretudo, tentar promover a tolerância, para proteger seus filhos de preconceito e das agressões físicas e psicológicas comumente sofridas por pessoas com dificuldade em se adequar a padrões claros de gênero.
A jornada dessas famílias costuma ser repleta de angústia, incertezas e questionamentos - inclusive quanto a tratamentos hormonais às vezes indicados para as crianças.
Crianças como CJ são as que definem a si próprias, às vezes em seus primeiros anos de vida, "fora das tradicionais (classificações) de menino ou menina", explica o livro Gender Born, Gender Made, da médica Diane Ehrensaft.
Isso não quer dizer que elas vão se tornar homossexuais. "Gênero e sexo são coisas completamente separadas", explica à BBC Brasil a médica Jennifer Hastings, especialista ligada ao centro americano Gender Spectrum. "Se sou um homem transgênero, posso me interessar sexualmente por outro homem, por uma mulher ou por ambos".
Mas como se manifesta essa desconformidade de gênero em crianças?
Alguns casos são semelhantes aos de CJ: uma criança que costuma dar mais interesse aos brinquedos e às atividades relacionadas ao sexo oposto. Mas há as que vão além e, desde cedo, insistem em que nasceram no corpo errado.
Quanto aos motivos disso, não há consenso entre especialistas, que estudam causas em alterações cerebrais, genéticas ou hormonais.
Uma dessas crianças é Jackie, de 10 anos, nascido Jack em Ohio. Em entrevista recente à rede de TV americana ABC, seus pais contam que, com um ano e meio de idade, ele se recusava a usar roupas de meninos. Uma semana antes de completar dez anos, com lágrimas nos olhos, ele chamou os pais e disse: "Não posso mais viver assim. Sou uma menina".
Desde então, a família ajuda Jack em sua transição para Jackie, permitindo que a agora menina use roupas femininas e se apresente assim ao resto da família.
Uma semana antes de completar dez anos, com lágrimas nos olhos, ele chamou os pais e disse: "Não posso mais viver assim. Sou uma menina".
A decisão não foi fácil. Os pais sofreram críticas dentro e fora da própria família, e temem o preconceito que Jackie deve enfrentar no mercado de trabalho e em suas relações pessoais futuras.
Pais consultados pela BBC enfrentam dúvidas semelhantes e dizem que, ao mesmo tempo em que receberam respostas positivas à iniciativa de lançar blogs e livros, também encampam uma luta diária para defender seus filhos e a decisão de se abrir a respeito disso.
Questionada sobre por que decidiu contar sua história na TV, a mãe de Jackie, Jennifer, respondeu à ABC: "Não acredito que nós tenhamos que nos esconder. A qualidade de vida dos transgêneros pode melhorar se soubermos mais a respeito".
O pensamento é parecido ao da mãe de CJ, que começou a escrever seu blog Raising My Rainbow
para buscar pessoas em situações semelhantes e para advogar por seu filho, prevendo as dificuldades que ele deve enfrentar ao crescer.
"Me preocupo muito com o futuro dele. Quero criar uma pessoa confiante, que possa lutar pelos seus direitos e pelos das outras pessoas", disse a mãe à BBC Brasil.
No blog, ela diz que, ao permitir que CJ se expresse como deseja, está dando a ele "o melhor presente de sua vida: a liberdade de ser quem ele foi feito para ser".
"Não estou aqui para mudá-lo; estou aqui apenas para amá-lo", prossegue.
Nos EUA, o assunto ganha evidência com entrevistas como a de Jackie e sua família, com blogs como o Raising My Rainbow e com o lançamento de livros como "My Princess Boy", de Cheryl Kilodavis.
Kilodavis é mais uma mãe que se surpreendeu quando seu filho caçula, Dyson, se interessou por vestidos de princesas. A princípio, ela resistia. "Não, princesas são meninas", dizia ela. Ao que o menino respondeu: "Então, eu sou um menino princesa".
Daí nasceu o livro, criado por Kilodavis como uma espécie de manual para as pessoas que conviviam com Dyson, com um pedido para que não o discriminassem. Ela não sabe se seu filho será uma criança transgênera - até o momento, ele se enxerga como menino -, mas diz que escreveu o livro (a ser lançado internacionalmente em 2012) para promover a aceitação de "qualquer tipo de diferença".
"Queremos apoiar e amar nossos filhos, não escondê-los e calá-los, destruir seu espírito", diz ela à BBC Brasil.
A história recebeu ampla divulgação nos EUA, e Kilodavis tem feito desde então uma série de entrevistas e palestras no país. "Para ser aceito (pelas diferenças), é preciso se expor", justifica.
Para a autora, um dos motivos pelo qual o livro se tornou tão comentado foram casos cada vez mais comuns de suicídio e tentativa de suicídio no país entre pessoas – adultos e crianças – que não se encaixam em definições claras de gênero e comportamento.
"Se você continua dizendo que a criança está errada (em seu comportamento transgênero), ela vai desaparecer em si mesma. E isso é difícil de desfazer", opina Jennifer Hastings.
Tratamento hormonal
Há casos em que o interesse por brincadeiras do sexo oposto passa com o tempo; há outros em que esse comportamento pode ter uma causa psicológica que, se investigada com ajuda de especialistas, pode ser identificada e trabalhada, explica o psicólogo brasileiro Rafael Cossi. Cada caso é um caso. E há muitos em que a criança parece estar manifestando, sim, que é transgênero.
No caso de Jackie, isso significou não apenas vestir-se como uma menina, mas também começar a tomar bloqueadores hormonais, que impeçam que seu corpo masculino se desenvolva na puberdade. O passo seguinte será ingerir hormônios femininos. Quando for mais velha, ela pode optar por fazer uma cirurgia de mudança de sexo.
A questão está longe de ter consenso entre os médicos, e há uma ala que critica a alteração de hormônios em crianças tão jovens.
A médica Diane Ehrensaft, por sua vez, defende que o procedimento pode ser revertido, se a criança assim desejar.
Em meio a polêmicas e preconceitos, especialistas e famílias consultados pela BBC Brasil afirmam que o tema tem sido tratado mais abertamente - até mesmo no Brasil, onde o aconselhamento a transgêneros é ainda raro em caso de crianças.
"À medida que a sociedade tolera mais os gêneros intangíveis, com suas diferenças, essas pessoas conseguem circular com mais facilidade", diz Rafael Cossi, autor de “Corpo em Obra”, que trata do transexualismo.
Para Ehrensaft, porém, o crucial continua sendo a aceitação familiar. "As dificuldades (para pessoas transgêneras) ocorrem o tempo todo. Muitas crianças se sentem tristes por não terem nascido com o sexo que queriam e chegam a perguntar 'Por que Deus errou (meu gênero)?'. Mas nada é pior do que a rejeição dos pais. Nesse caso, os resultados são realmente dolorosos".
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