Resolução retira autonomia da mulher no parto e dá margem à violência obstétrica
Conselho Federal de Medicina emitiu Resolução que altera direito da gestante à recusa terapêutica; entenda o que isso significa na prática
Por Claudia Ratti |
Na semana passada, o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu uma Resolução (nº 2.232/19) retirando o direito da gestante à recusa terapêutica em determinadas situações. Na prática, isso significa que o médico pode discordar da mulher e submetê-la a procedimentos como episiotomia e manobra de Kristeller mesmo que ela não queira.
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Segundo o CFM, essa é uma forma de evitar complicações e garantir a vida do feto. No entanto, a Resolução causou polêmica entre especialistas da área. Para muitos, impedir a recusa à terapêutica compromete a autonomia da mulher durante o parto, ferindo direitos e abrindo margem para práticas consideradas violentas.
Para entender melhor o que está em jogo, o Delas buscou explicações do Conselho Federal de Medicina , de uma advogada e de uma gionecologista doutora em saúde reprodutiva.
Entenda a Resolução
A Resolução do CFM retira o direito à recusa terapêutica em determinados casos, como aqueles que ferem a saúde de terceiros ou quando a vontade da mãe é considerada “abuso de direito” em relação ao feto. Clique aqui para ler o documento na íntegra .
Na prática, mesmo que uma mulher esteja passando por um parto natural e recuse a episiotomia (corte na região do períneo para aumentar o canal), o médico ainda pode submetê-la ao procedimento se achar que é o melhor a se fazer, por exemplo. Diante disso, onde fica a autonomia da mulher ?
Segundo o Conselho Federal de Medicina, a Resolução não tem foco na saúde materna nem pretende permitir procedimentos à força. Na verdade, autoriza o médico a rejeitar a recusa terapêutica em casos definidos como abuso de direito.
Leia na íntegra a nota de posicionamento do CFM enviada ao Delas:
"Essa resolução não foi elaborada e aprovada com foco na saúde materna. Como já dissemos anteriormente seu objetivo foi esclarecer a possibilidade do direito de recusa à terapêutica proposta ao paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, no momento da decisão, em tratamento eletivo.
Ou seja, deixa claro, do ponto de vista normativo, que o direito à recusa terapêutica deve ser respeitado pelo médico, desde que ele informe ao paciente os riscos e as consequências previsíveis da sua decisão, podendo propor outro tratamento disponível.
No em seu artigo 5º, a norma informa que a recusa terapêutica não deve ser aceita pelo médico quando caracterizar abuso de direito, pelo qual a recusa terapêutica coloca em risco a saúde de terceiros ou impede o tratamento de doença transmissível ou de qualquer outra condição semelhante que exponha a população a risco de contaminação.
No caso, da recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto.
Por exemplo, vejamos os seguintes exemplos: uma mulher gestante que se recusa a se submeter a uma cesariana e o bebe está pronto para nascer e com sofrimento fetal. Nesta situação, o médico tem a possibilidade de não aceitar a recusa terapêutica, pois isso pode representar a morte da criança e até da mulher.
Em situações assim, não significa que o ato será feito à força, mas dar a ele o direito de acionar as autoridades competentes para tomada de providências. Sem essa resolução, isso significaria quebra do sigilo médico. O mesmo entendimento vale para o uso de determinadas medicações ou exames."
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E a autonomia da mulher?
Porém, especialistas acreditam o contrário. Ana Paula Braga, advogada co-fundadora do escritório “Braga & Ruzzi”, afirma que apesar de a Resolução ser escrita de uma forma “zelosa” com a saúde pública, a realidade é outra.
“Na verdade, trata-se de uma norma bastante perigosa e que retira a autonomia dos pacientes de decidirem sobre quais procedimentos médicos desejam ou não realizar e a quais práticas desejam ser submetidos”, fala.
Melania Amorim, professora associada de Ginecologia da UFCG com pós-doutorado em Saúde Reprodutiva na OMS e membro da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, concorda e aponta para o fato de que o texto privilegia os direitos do feto.
“O feto passa a existir como sujeito de direito, inclusive com direitos superiores em relação aos da gestante, o que não se concebe do ponto de vista jurídico. Fetos não são sujeitos de direito. Eles têm apenas expectativa de direito. Só passam a ter direitos estabelecidos quando nascem”, enfatiza.
Em relação a isso, a advogada explica que não há uma definição jurídica sobre o início da vida, mas, de modo geral, entende-se que começa a partir do nascimento com vida. No entanto, como há expectativa de que o feto se tornará uma pessoa, os direitos são protegidos.
“Mas, concordo que a Resolução garante mais direitos a um ser humano que sequer nasceu, do que a uma mulher que é um ser humano completo, pois no binômio mãe-feto, a Resolução privilegia o feto”, diz Ana Paula.
Ela ainda acrescenta que a Resolução coloca a recusa terapêutica da gestante em relação a determinadas práticas pode ser considerada como abuso de direito dela em relação ao feto.
“Essa norma legitima a ocorrência de violência obstétrica , já que permite ao médico adotar práticas invasivas mesmo sem o consentimento da mulher, a fim de ‘preservar o direito do feto’”, fala a advogada.
Entre essas práticas, pode-se citar a injeção de ocitocina para acelerar o parto, a manobra de Kristeller , o corte de episiotomia e o parto cesariano. Vale lembrar que essa manobra, por exemplo, é prática banida pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Além disso, dados do Ministério da Saúde indicam que a cesárea representa 55% dos partos do país, podendo chegar a 84% em hospitais particulares. A OMS recomenda que o número não ultrapasse 10%.
“Realizar procedimentos sobre o corpo das mulheres sem seu consentimento deveria constituir infração ética grave salvo em condições de risco iminente de morte, não se justificando ressalvas em nome de direitos e supostos benefícios para o feto”, afirma Melania.
Nesse sentido, Ana Paula fala sobre a violação à capacidade da mulher de decidir sobre seu próprio corpo, sobre como deseja realizar seu parto e como deseja levar sua gestação. Junto a isso, Melania acrescenta: “O corpo da mulher é da mulher e ela não pode ser considerada mero repositório do feto”.
A advogada e a ginecologista não foram as únicas a se posicionar dessa forma. Nas redes sociais, a discussão também foi ampla e apontou que, além de abrir margem à violência obstétrica, reflete o contexto politico e social do Brasil.
“Precisamos destacar que este não é um movimento isolado para a retirada de direitos sexuais e reprodutivos. É bem sintomático que a Resolução seja editada poucos meses depois do Ministério da Saúde emitir um despacho posicionando-se contra o reconhecimento da violência obstétrica ”, finaliza Ana Paula.