Criança normal: primeira consulta no psiquiatra teve surpresa
Odara Gallo é mãe de Franco, de 3 anos, diagnosticado com autismo, e escreve sobre a experiência às sextas no Delas
Aos dois anos, Franco ainda não tinha diagnóstico de autismo. Não falava e nem tentava se comunicar conosco apontando o que queria. Sentia fome, mas não pedia comida. Só sabíamos que ele estava faminto quando chegávamos com o prato e ele quase chorava de alegria. “Bom... dois anos, não fala, não interage, hora de procurar a psiquiatra.”
Os especialistas clamam e insistem por um diagnóstico precoce, mas se eles soubessem a dificuldade que é encontrar um psiquiatra que atenda crianças menores de CINCO anos... Esse povo não tem internet em casa, gente? Com uma pesquisa rápida, até eu já era capaz de falar com propriedade todos os benefícios de se fazer uma intervenção com a criança ainda novinha. Enfim, achei uma que atendia.
O consultório era em outra cidade, mais de 100 km de onde moramos, então planejei tudo: horário de saída, brinquedos pra levar, tablet carregadinho, tudo no jeito. Vai dar certo! Franco dormiu a viagem inteira e acordou já na hora do almoço, no estacionamento do shopping na cidade de destino. É o que chamo de sucesso! Feita a parada, partimos para o consultório. Quais as chances de encontrar uma vaga EM FRENTE ao prédio que fica em uma das avenidas mais movimentadas da cidade? Pois o lugarzinho estava lá, nos esperando. Dia de sorte!
Sala de espera tranquila, decoração impecável (bem diferente da segunda consulta, relatada a matéria), chegou nossa hora. Franco entrou na sala e se sentiu à vontade como sempre. Olhou o divã, quis subir, pular, nem ligou para a psiquiatra.
- Oi, doutora, tudo bom? Então... Trouxe ele aqui porque estamos preocupados com a falta de interação dele, não se comunica conosco. A pediatra nos alertou que poderia ser autismo ou algum transtorno do espectro.
- Dois anos? Muito novinho ainda...
- Sim, mas olha só... Ele ainda não fala, sabe? E nem tenta falar. Não nos mostra o que quer para pegarmos, essas coisas. Temos que ficar adivinhando, ele se irrita e...
Uma mãozinha quente tocou meu braço. Parei de falar. Franco buscou a minha mão e fez força para puxar. Atravessou a sala de mãos dadas comigo, me olhou nos olhos e apontou o carrinho que estava na estante do consultório. Ele não deve ter entendido por que um silêncio se instalou na sala naquela hora.
Sem saber se ficava feliz pelo feito inédito do meu filho ou se enfiava a cara dentro da bolsa e tentava sair sem ser notada, olhei para a médica e tentei (sem o menor efeito) explicar:
- Ele nunca fez isso em casa.
- Entendo.
- Então?
- Como eu disse, ele é muito novo. Está ótimo, é uma criança normal. Se vier a ter alguma coisa, só vamos saber bem lá na frente.
Peguei o que sobrou da minha dignidade, a minha cara que estava no chão, o Franco e fui embora. Saí de lá me sentindo uma daquelas mães que leva o filho ao psicólogo pra resolver birra e malcriação. Meses mais tarde, confirmaríamos que, definitivamente, não era o caso.
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*Odara Gallo é formada em Jornalismo desde 2006, mas só criou coragem para ter um blog dez anos depois, quando descobriu que seu filho, Franco, tinha Transtorno no Espectro Autista. Às sextas, escreve sobre sua experiência no Delas. "Num dia Franco era uma criança diferente. No seguinte, eu era mãe de uma criança autista. Um pouco do que aconteceu dentro de mim com essa mudança quis sair e se desenhar em palavas. Nasceu esse blog. Quê Cê Qué?"