Num dia Franco era uma criança diferente. No seguinte, eu era mãe de um autista
Odara Gallo é mãe de Franco, de 3 anos, diagnosticado com Transtorno no Espectro Autista
O dia da consulta com o psiquiatra foi aguardado com muita ansiedade. Finalmente eu poderia saber mais sobre as especificidades do problema do Franco, entender grau do autismo no caso dele e ter em mãos o laudo com o diagnóstico para correr atrás de tudo o que ele tivesse direito.
Me preparei para esse dia. Pesquisei, quis saber que exames o médico pediria, tinha em mente tudo o que eu precisava perguntar. De fato, me preparei para a consulta, não para a sala de espera.
O dia da consulta com o psiquiatra foi aguardado com muita ansiedade. Finalmente eu poderia saber mais sobre as especificidades do problema do Franco, entender grau do autismo no caso dele e ter em mãos o laudo com o diagnóstico para correr atrás de tudo o que ele tivesse direito"
Franco e eu chegamos cedo, pegamos uma senha ainda na recepção, e me explicaram que eu deveria atravessar o estacionamento até a ala psiquiátrica. Ao passar pela catraca, reparei que um garotinho passou por baixo e veio atrás da gente. O caminho não era novidade pra ele como era pra nós. À medida que nos afastávamos da portaria, meu desconforto aumentava. O menino continuava ao nosso lado. Nem sinal dos pais dele.
Encontrei a sala de espera. Os olhares cansados daqueles pais se voltaram brevemente para nós, mas sem dar muita atenção. Só uma conferida. Éramos novos por ali. Crianças sentadas, distraídas por algum brinquedo. Dava para sentir a ansiedade no ar. Manter o filho calmo enquanto espera é uma espécie de atestado de sucesso para pais de crianças com desenvolvimento atípico.
- Não é melhor você voltar? Seu pai deve estar te procurando.
O garotinho não ligou para a minha preocupação. Estava empenhado em se aproximar do Franco o máximo que ele pudesse. Ficou bem pertinho, rostos colados. Franco estranhou, me olhava como se pedisse explicação. O que eu ia dizer?
- É um amiguinho, filho. Dá oi pra ele...
Sem cerimônia, o novo amiguinho pegou o trem que estava na mão do Franco e saiu para brincar.
Grito do Franco seguido de choro. Cadê o pai dessa criança? Me senti horrível por desejar que aquele menino não estivesse por perto, não incomodasse. Seria isso que outros pais pensariam sobre o Franco?
- Devolve pra ele, senão ele vai chorar...
Foi o que consegui falar. Sem nenhuma convicção. Era isso que eu deveria fazer numa situação como aquela? O pai do garoto chegou. Roupas surradas, boné, uma mochila murcha nas costas.
Sentou em um canto, cansado como todos os outros pais.
Franco pegou seu brinquedo de volta e o garotinho mudou de foco. O tablet nas mãos de um outro menino. Alívio. Vi o desconforto no olhar da mãe do dono do tablet e me senti um pouco melhor. Somos todos humanos, afinal.
- Deixa sua ficha aqui e pode voltar daqui uma hora.
Passei na cantina, peguei um salgado, uma coca zero. Franco começou a ficar impaciente.
- Filho, a gente vai voltar lá, sentar e eu te dou o tablet, tá?
Grito. Saquei o aparelho da bolsa e dei na mão dele no colo mesmo. Franco e tablet de um lado. Coca e salgado de outro. Voltamos para a sala de espera. Franco ocupado. Quieto. Eu aflita. Não queria gastar a bateria do tablet ainda. Tínhamos duas horas de viagem de volta, só nós dois no carro, o que eu ia fazer na estrada sem meu trunfo?"
Grito. Saquei o aparelho da bolsa e dei na mão dele no colo mesmo. Franco e tablet de um lado. Coca e salgado de outro. Voltamos para a sala de espera. Franco ocupado. Quieto. Eu aflita. Não queria gastar a bateria do tablet ainda. Tínhamos duas horas de viagem de volta, só nós dois no carro, o que eu ia fazer na estrada sem meu trunfo? Procurei uma tomada por perto e só havia uma, grudada um rapaz que parecia bem debilitado. Cabeça baixa, pés machucados, não se mexia.
O preço da tomada era acordar/chamar atenção/incomodar/interagir com mais um desconhecido. Ok, esquece a tomada.
O garotinho que o Franco fez (aquela espécie de) amizade voltou a se interessar por ele. Enfiou a cabeça entre o tablet e o nariz do Franco. Olha eu me sentindo péssima de novo. Torci para o Franco não se incomodar e me concentrei em mastigar o meu salgado.
- Moça, você pode dar um pedaço pra ela? – pediu a mãe de uma garotinha.
Dividi o lanche pela metade e entreguei. Aquela interação mínima com outros pais era a brecha que uma senhora estava esperando para me enfiar na conversa dela, que contava com certo orgulho que a mãe do "menino dela" era "drogada, vivia na rua e não quis saber dele desde bebezinho".
- Ele sabe disso tudo. Nem quer saber da mãe. Mãe é quem cria, né? Eu.
Enquanto falava, a senhora dava uns cutucões/afagos no menino de uns 10 anos que nem reagiu.
A história não era mesmo novidade pra ele. Meu Deus! Esse médico nunca chega?
Uma funcionária do hospital apareceu oferecendo café. Todos levantaram. Minha chance de pegar a tomada! Roubei o lugar de uma pessoa doente por causa de uma tomada. Me senti egoísta quando ele voltou com o copo de café, olhou pra mim e sentou em outra cadeira, conformado.
Abaixei a cabeça tentando me convencer de que a minha viagem de volta dependia daquilo. A minha tranquilidade e conforto é que dependiam. Egoísta.
Minutos (uma eternidade) depois, começaram a chamar os pacientes. Tentei não parecer afoita para me livrar daquela sala, mas arranquei o fio da tomada com tudo, peguei o Franco pela mão e entrei. Transcorreu-se a consulta (farei um post sobre ela). Atravessei a sala de espera. Nem mais um minuto naquele lugar.
- MOÇA! – Gritou uma senhora.
- Oi? – Respondi, quase em tom de desespero.
- Esqueceu sua coca.
* Odara Gallo é formada em jornalismo desde 2006, mas só criou coragem para ter um blog dez anos depois, quando descobriu que seu filho, Franco, tinha Transtorno no Espectro Autista. Às sextas, escreve sobre sua experiência no Delas . "Num dia Franco era uma criança diferente. No seguinte, eu era mãe de uma criança autista. Um pouco do que aconteceu dentro de mim com essa mudança quis sair e se desenhar em palavas. Nasceu esse blog. Quê Cê Qué? "