"Era condicionada a ser mais uma mulher submissa que acatava o que diziam"

Para ficar perto do filho, Manoela Gonçalves criou a Casa das Crioulas, um local feito para mães autônomas

Fachada colorida, grafitada e decorada com mosaicos, ausência de campainha e portão aberto, itens que fogem do padrão das casas tradicionais, mas que caracterizam a Casa das Crioulas, um lugar que luta para promover o protagonismo, a autonomia e o fortalecimento da mulher. 

Foto: IG Delas
Manoela Gonçalves tem 32 anos, é mãe de Manolo, de 6 anos e criadora da Casa das Crioulas

A Casa foi criada por uma mulher que (como tantas outras) estava acostumada com a rotina do mercado de trabalho e que (também como tantas outras) se tornou mãe solteira, mas que (como poucas) se questionou e buscou uma opção para ficar perto do filho. 

Direitos negligenciados

"Depois da maternidade, entendi que os direitos da mulher eram negligenciados. Antes disso, era condicionada a ser mais uma mulher submissa que acatava o que diziam. Tudo começa com a licença maternidade, que é de 4 meses, mas não tem cabimento colocar uma criança dessa idade numa creche. Estudos dizem que o vínculo afetivo materno se fortalece até os 5 anos da criança, ou seja, é sugerido que a criança fique dos 0 aos 5 anos com a mãe. Além disso, dizem que é saudável amamentar a criança até os seis meses, mas na maioria dos trabalhos não há flexibilidade de horários quanto a amamentação. Isso foi o ponta pé inicial para começar a desconstruir o castelo que eu construí. A Casa das Crioulas surgiu da minha necessidade de ser mãe e validar a maternidade", explica Manoela Gonçalves, que criou o projeto. Ela se tornou mãe aos 26 anos de Manolo, que hoje tem 6 anos. 

Isso porque, ao mesmo tempo que a mulher tem que ser mãe como se não trabalhasse, tem que trabalhar como se não tivesse filhos"

De fato, organizar o tempo e conciliar trabalho com maternidade é o desafio de muitas mães hoje em dia, principalmente das mães solteiras, chamadas por Manoela de "mães autônomas". Isso porque, ao mesmo tempo que a mulher tem que ser mãe como se não trabalhasse, tem que trabalhar como se não tivesse filhos.  

Foto: iG Delas
Relação de confiança e afeto entre mãe e filho são presentes e fortalecidas no dia a dia

"Minha mãe se estressava algumas vezes mas ela me proporcionava viver a minha infância ao lado dela. Nos dias de hoje, com o tempo escasso, há um condicionamento excessivo de achar que presente, coisas caras, escolas e educação são formas de substituir presença, convivência, vínculo afetivo. Foi quando o Manolo nasceu que percebi que se não fizesse algo por nossa relação, seria mais um na estátistica do descaso. Dizem que heróis são aqueles que não tiveram tempo de correr... pois é", opina Manoela. 

Coloquei o Manolo pra ficar na xepa comigo, que é catar alimento no fim das feiras. Coloquei o meu filho pra tomar banho de mangueira porque era o único chuveiro que tinha na casa, fazia fogueira e esquentava miojo pra ele (...) Como é possível a gente pagar R$ 5 por mamões que a gente pode achar no chão sem precisar pagar por eles?"

Mudar não é fácil

Ser diferente, mudar e ir contra o que está instituído não é fácil e as dificuldades que Manoela e Monolo passaram não foram poucas. O primeiro endereço da Casa das Crioulas foi no bairro de Perus, região da periferia de São Paulo, e a casa precisava de reformas. 

Com inúmeras dificuldades, morada inóspita, banhos de mangueira, fogueira pra esquentar comida, família de baixa renda, a solução era coleta de alimentos em fim de feira, a xepa; e ela tem orgulho de ensinar seu filho a valorizar os alimentos em bom estado descartados pela maioria, e vê uma ótima oportunidade de valorizar o consumo consciente. "'Por que estou vivendo isso, mãe?’, ele perguntava. 'Porque essa é a vida que eu posso te dar', eu respondia'", lembra Manoela, que diz que as situações uniram ainda mais mãe e filho.

"Afinal, como é possível a gente pagar R$ 5 por mamões que a gente pode achar no chão sem precisar pagar por eles?", emenda.

Nova vida 

“Fiz a casa pensando em mim e no meu filho, e reverberou em outras mães e mulheres que também se viram como mães solteiras e anônimas que quiseram somar comigo na causa”.

Foto: iG Delas
Manoela e o filho, Manolo

"Me refiz do zero, fui me desconstruindo e, cada muro que eu quebrava na casa de Perus, era uma reflexão. Da barraca lá no quintal, a gente está numa casa desse tamanho”, comemora Manoela, referindo-se ao novo endereço, em um terreno de 260 m² no bairro do Butantã. 

Mãe autônoma

A nova casa ainda está em construção, mas já possui um projeto para dar continuidade às atividades que já aconteciam e alavancar outras para desenvolver ainda mais a causa de tornar a mulher realmente uma pessoa autônoma no mercado de trabalho ao mesmo tempo em que exercita a maternidade. 

Foto: iG Delas
A Casa das Crioulas está com novo endereço, no bairro do Butantã, e possui muitos projetos


"Aqui é possível fazer oficina de mosaico, aroma terapia, saboaria (fábrica de sabão), roda de conversa com mulheres, ioga, culinária, biblioteca, cinema com debate de ideias. Mas também tem espaço para muita inovação, como oficina profissionalizante de programação, mecânica, e tantas outras para a mulher que quer trabalhar. Tudo isso voltado para o protagonismo, a autonomia e o fortalecimento do feminino. Mulheres juntas que podem fazer coisas sem depender de outras pessoas", explica Flavia Amorim, apoiadora da casa.

Quer ajudar?

Mas para que tudo isso se torne realidade e a casa seja autossustentável e possa também representar uma fonte de renda para as frequentadoras, o projeto sempre busca investimento e parceiros. O ponta pé inicial para a reforma e início da casa de Pinheiros é a campanha aberta ao público  "#maesautonomas" , que está arrecadando doações. A meta é alcançar R$ 35.843 (no fechamento desta matéria, 27% do objetivo havia sido alcançado). 

Veja o vídeo da campanha #maesautonomas e ajude a causa