“Fui agredida e enganada duas vezes, mas não me sinto vacinada contra catfish”

Lara* se relacionou com duas mulheres que se passavam por homens na internet. Nas duas situações, ela saiu em busca de encontrar seus amores virtuais, mas o que aconteceu foi bem diferente

Foto: Elena Kalinicheva
Lara* caiu duas vezes na mesma história

“Meu nome é Lara*, tenho 24 anos e, em meados de 2009 ou 2010, eu participava de uma comunidade muito grande do Orkut, que se chamava 'Fake'. Eram pessoas que faziam perfis com fotos de personagens ou de famosos e viviam vidas paralelas às suas vidas reais. Era muito comum que pessoas no Fake se relacionassem, o famoso webnamoro.

Eu conheci, até então, um menino. Ele dizia que se chamava Lucas, morava no interior de São Paulo e a gente se relacionava pela internet, um verdadeiro namorico fake. Um fato muito curioso é que no web relacionamento já rolavam umas coisas meio bizarras. Para deixar claro, ele dizia que tinha 17 anos e eu, na época, tinha 11. Ele mandava as fotos de 'vida real' dele para mim, que - na linguagem da internet daquela época - se chamava 'off'.

Eu comecei esse namorico quando eu tinha 11 e os anos foram passando. Quando estava com 16, uma outra pessoa com um perfil aleatório, que também era meu amigo, me mandou mensagem falando:

- Ah, sabe fulano?
- Sim, o que tem?
- Eu acho que está na hora de você saber: ele mente para você. Não é um menino. Ele não tem a idade que diz que ter. A única coisa que ele disse de verdade é onde ele mora.

Eu fiquei confusa e fui confrontar, né? Eu falei: 'Olha, chegaram em mim e disseram que você, na verdade, é uma menina e que você tem 15 anos agora', e aí a pessoa admitiu, disse que, na verdade, o nome dela era Pâmela*, e que ela tinha essa idade mesmo. Ela era um ano mais nova que eu, então, quando eu tinha 11 anos, ela tinha 10 e dizia para mim que tinha 17. Ela admitiu e disse que agora que eu sabia a verdade, se eu quisesse conhecer a casa dela seria legal. 

Eu tinha esse webnamoro desde os 11 anos, isso para uma criança que virou uma adolescente era algo muito intenso, muito sentimentos, hormônios a flor da pele. Na época, menti para os meus pais, a cidade que iria, mas não contei a verdade e fui passar o Ano Novo na casa dela.

Eu cheguei no dia 30  de dezembro e começou tudo errado. Já senti uma vibe meio diferenciada e veio o primeiro baque: quando eu cheguei, descobri que ela tinha uma namorada que sabia da minha existência. A namorada sabia que a Pâmela se relacionava comigo pela internet e não gostava de mim. Chegamos na casa dela e dava para ver de longe que era um lar bem perturbado. O pai e a mãe tinham problemas, a mãe traía o pai, que era extremamente agressivo. Morava ela, uma prima, dois irmãos pequenos, a mãe e o pai.

Os pais nem faziam ideia de que eu iria para lá. Eles ficaram atônitos com minha chegada, ela falou que eu era uma amiga e que eu ia passar uns dias lá. No primeiro, eu descobri que ela era viciada em drogas e que não podia mais buscar as drogas perto da casa dela porque teve 'problemas por lá' e era proibida de entrar na viela. Como era a primeira vez que eu estava lá e ninguém me conhecia, ela pediu para eu subir e pegar as drogas. Eu nunca tinha feito isso e fui.

Nesse mesmo dia em que eu cheguei, não comi nada o dia inteiro. A Pâmela não me ofereceu nada para comer e, enquanto andávamos pela rua, eu pedia para pararmos para comer e ela falava não. 

No dia 31, ia ter uma festa de Ano Novo e eu estava preparada para ir, mas foi um dia bem estranho. A gente iria para essa festa, as mães e os irmãos iriam para um canto, a prima para outro, o pai para outro, mas todo mundo ia fazer a ceia juntos.

Antes da virada do ano, a gente saiu e eu comi algo na rua. Na hora do jantar, a mãe dela fez frango assado e alguns outros pratos. A gente estava lá, a mãe dela colocou a mesa e chamou todo mundo, inclusive eu. Estava todo mundo comendo, mas não tinha um prato para mim. Eu sentei na mesa com todos, cada um tinha seu prato, eles comeram e não tinha prato para mim. Não me ofereceram comida e não me deixaram comer. Eu fiquei sentada vendo as pessoas comerem. 

Quando todos estavam prontos para sair, eu também estava pronta e a Pâmela disse: 'Então, a minha namorada não quer que você vá com a gente, então, você vai ficar aqui'. Ela me deixou na casa dela sozinha, trancada na noite de Ano Novo. 

Ela chegou de madrugada em casa e, na hora que chegou, eu estava no telefone com uma amiga, ela ouviu a conversa toda, ficou com ciúme e me bateu. Não foi um tapinha, ela me deu um soco na cara porque estava com ciúme (sendo que tinha namorada!). Depois disso, ainda fiquei o dia primeiro lá, ela não me deixou comer no dia primeiro. Eu só comi no dia 2 de janeiro. 

A situação em si era tão esquisita, tão maluca, que o fato de estar dormindo na casa de desconhecidos não foi nem algo que eu pensei. Depois que eu já estava na minha casa que fui me tocar disso. De todos os problemas que eu tive com essa situação, acho que o que eu menos me preocupei foi com estar dormindo na casa de estranhos. Eu me preocupava se eu estaria viva no outro dia e não por estar dormindo na casa de desconhecidos, mas porque ela me batia e não me deixava comer. 

Eu esqueci um moletom na casa dela e fui buscar meses depois. Meu plano era só ir buscar e voltar para minha casa no mesmo dia. Ela me prendeu lá o dia inteiro, quando foi à noite, ela se recusou a me levar na estação de trem e eu não conhecia a cidade, então, eu me perdi. 

Já era tarde, uma testemunha de Jeová me achou sentada chorando na frente de uma farmácia e me ajudou a chegar na estação, mas o último trem já tinha partido. A minha sorte é que quem estava de plantão na estação eram guardas mulheres porque eu ia ter que dormir do lado de fora da estação de trem com moradores de rua, mas elas me deixaram entrar e esperar com elas até o primeiro trem chegar. Eu liguei para a minha mãe e falei que ia ficar lá por que ia em uma festa, mas dormi na estação de trem. 

Depois dessas situações, a Pâmela me mandou mensagem perguntando o porquê eu não estava falando com ela e eu fiquei indignada. Eu só cortei relações com ela depois desse último episódio porque como eu conheci ela muito nova e foram anos nesse web relacionamento, que era abusivo, se é que isso é possível, eu era extremamente dependente. 

Hoje em dia eu consigo dar risada, mas uma coisa que na época foi muito difícil e virou gatilho para mim, é que toda vez que eu ia em um restaurante, que eu via na casa da minha avó ou minha mãe fazia um frango assado, eu olhava para o prato e chorava. Ninguém entendia, mas foram nove meses nos quais eu não conseguia comer frango e toda vez que eu via um, era um gatilho muito grande. Depois de muito tempo que eu me toquei que quando eu via o frango, aquilo me lembrava da situação de ter passado fome e apanhado. Felizmente, depois passou e segui o baile.  

O raio caiu no mesmo lugar, com um estado de diferença 


Três anos depois, quando eu estava com 20 anos, fizeram uma versão fan-made do Orkut e eu e várias amigas voltamos e conheci um rapaz. Foi muito mais rápido, tudo isso rolou em questão de três meses. Conheci, começamos a conversar, papo vai, papo vem, e nem demorou muito, uma semana, duas semanas, para que ele pedisse para ver o meu 'off'. Ele mandava foto de um rapaz e falava que o nome era Fernando, que morava no interior do Rio de Janeiro e trabalhava na empresa de logística de caminhões do pai dele.

Na época do primeiro, celular ainda não era smartphone, era um pouco mais precário. Eu vou fazer 25, mas cinco anos atrás já tinha smartphone, já tinha WhatsApp, e ele mandava fotos, vídeo, áudio, fazia ligação e a voz era de homem. Fui escalando muito rápido a relação e, de repente, ele estava falando que me amava, que estava apaixonado, que queria me namorar e me conhecer.

Um ser humano normal pensaria: 'Poxa, olha o que eu passei há três anos. Olha o que rolou, não vou me meter nessa roubada', mas isso é um ser humano normal, não eu. Pensei que não podia me basear em uma experiência ruim e deixá-la ser o parâmetro para todas as minhas experiências. Não é por que fui trouxa na primeira vez que eu vou ser trouxa da segunda vez. O narrador devia estar falando no fundo: 'ela ia ser trouxa'. Até aí, tudo estava maravilhoso. Ele estava fazendo planos de vir me ver, procurando hotel e, dessa segunda vez, eu contei para a minha família toda, mostrava as fotos e os áudios, combinei um almoço com ele e a família toda. 

Na primeira experiência, eu descobri que não era a pessoa e fui. Dessa segunda vez, quando faltava uma semana para ele vir, a gente estava conversando e foi uma conversa muito besta, eu só não concordei com algo que ele disse e ele me mandou mensagem no Facebook falando que achava melhor terminar, disse que tinha comprado aliança, mas que era melhor acabar com tudo porque eu não era madura o suficiente para estar em um relacionamento. Dizia que eu não sabia pensar por dois, só sabia pensar por um, e que se eu era uma pessoa tão egoísta e individualista, talvez eu não estivesse pronta para estar em um relacionamento. Isso uma semana antes de vir me ver.

Eu lembro que, quando eu tive essa conversa com ele no Facebook, estava na casa de uma amiga minha e a mãe dela estava lá. Me lembro que a gente sentou no sofá e eu chorei muito e falei: 'Cara, tem alguma coisa muito errada. Como que, do nada, uma semana antes de vir para cá isso acontece?'. Aí eu fiz o que todo adolescente faria, mesmo não sendo mais adolescente. Eu falei para os meus pais que ia passar o final de semana na praia com amigos e comprei uma passagem de ônibus para o Rio de Janeiro. 

Eu só contei a verdade para a minha irmã, peguei um hotel, estava um pouco mais preparada. Peguei um ônibus na rodoviária do Tietê, cheguei ao Rio no sábado, fui e tive que pegar um outro ônibus e uma van para chegar na cidade, que é no interior do estado. A cidade era bem pequena, 5 ou 6 mil habitantes. Eu estava muito animada, cheguei, fui para o hotel, conheci a cidade e mandei mensagem perguntando onde ele estava. Ele me perguntou o porquê e eu falei que estava na cidade dele. 

Ele não acreditou, eu mandei uma foto para ele da passagem e ele me chamou de louca. Falei para ele que era isso e que na hora que ele quisesse conversar, a gente se encontrava e conversava. Eu fui na piscina do hotel, na praia, andei e passei o dia fazendo as minhas coisas. Eu cheguei à tarde no hotel e fui dormir. Não me lembro exatamente o porquê, mas o meu Messenger estava conectado no celular da minha amiga. 

Quando o relógio bateu 20h, minha amiga começou a me ligar sem parar e perguntar onde eu estava. Eu atendi e ela perguntou se eu estava sozinha, eu falei que estava e ela perguntou se eu já tinha lido o meu Messenger. Eu falei que não e perguntei o que aconteceu. Ela me pediu para ler e para depois ligar para ela.

Quando eu li, tinha uma mensagem enorme dele falando que ele não achou que ia chegar nesse ponto, que ele não imaginou que eu ia ser maluca de ir atrás, mas que, na verdade, ele era uma menina chamada Giovanna*. Ela me disse que já tinha feito isso com outras pessoas e várias vezes, mas que nunca deu em nada. Ela também disse que só estava me contando aquilo porque a família dela sabia, já tinha dado algum problema em outra vez. A família dela sabia desse 'fetiche' dela em fazer isso e, depois que eu tinha falado para ela que eu estava lá, Giovanna passou o dia muito nervosa, sem saber o que fazer e a irmã dela percebeu que ela estava estranha. Ela teve que contar para a irmã o que ela tinha feito e que eu estava lá. 

A cidade era muito pequena e, quando eu fui fazer pesquisa de hotel para ficar lá, só tinham dois hotéis na cidade. Eu peguei um que parece ter sido providência divina porque o hotel que eu peguei ficava na rua da casa da menina. Ela falou que não estava botando fé, mas que tudo piorou porque ela me viu saindo do hotel e indo andar na rua. Foi aí que ela ficou mais nervosa e teve que contar a verdade. No final, ela ainda mandou na mensagem: 'Surta aí e me responde depois'.

Eu não acreditei que eu caí nessa de novo, mais uma vez caindo nessa palhaçada. Ela falou que se eu quisesse encontrá-la, me encontraria e conversaríamos ao vivo e eu respondi que sim. A minha intenção era conversar com ela e entender, mas eu acordei no dia seguinte e mandei mensagem para ela falando que não precisava me encontrar, que eu estava indo embora e que eu não precisava passar por isso. Eu avisei que entraria em contato com os pais dela porque eu queria o reembolso e ressarcimento de tudo o que eu gastei para ir para lá. Ela mesma admitiu que não era a primeira vez que enganava pessoas. 

Eu voltei para São Paulo e morreu aí essa história toda. Ficou apenas o aprendizado. Ela estava usando o nome e a foto de outra pessoa, depois eu encontrei o perfil original do menino, entrei em contato com ele, contei a história toda. Ele é brasileiro, mas mora no Canadá com a família.

O que eu tirei dessa história?

Pelo lado financeiro, com a Pâmela, não teve um investimento tão grande, foi mais o básico, não foi tão longe. Se eu for parar para pensar, o gasto na primeira situação não me abalou de forma alguma porque foi uma coisa tão bizarra que todos os outros detalhes ficaram muito pequenos perto do que rolou lá. Na primeira, eu ainda fui na onda do catfish, na segunda não, eu realmente só descobri quando eu já estava lá.

Com a Giovanna foi realmente um investimento por ter pagado a passagem de ônibus de São Paulo ao Rio, os transportes até a cidade dela, o hotel, os táxis, alimentação… nessa segunda vez, realmente teve um investimento muito grande, foi um abalo péssimo. Com a Giovanna, o financeiro foi pior que o emocional, tanto que eu falei que iria achar os pais dela, que queria o meu dinheiro de volta porque se ela fazia isso com os pais sabendo e eles não tomavam uma atitude em relação a isso, era um problema deles. Foi uma luta durante muito tempo, mas eu me lembro que depois de um tempão ela me transferiu o dinheiro. 

Durante um tempo, depois de cada acontecimento, fiquei um pouco afetada. O segundo eu já estava mais calejada, no primeiro foi realmente algo que abalou as estruturas, mas foi na época. Depois de um tempo, eu aprendi a lidar com isso e eu vejo isso como aprendizado. 

Eu sei que não é algo que acontece todo dia e com todo mundo, eu gosto de pensar que eu sou muito especial, então tenho que passar por situações muito especiais para aprender lições. Situações comuns já não servem mais. Se eu ficar pensando só no lado negativo ou 'cara, como eu fui trouxa', não dá para tirar um proveito. 

Hoje em dia eu consigo pensar e falar sobre isso tranquilamente, não me sinto mais mal. Eu ouso dizer que não tenho 100% de certeza de que isso não aconteceria no futuro comigo. Sou totalmente capaz de passar por uma situação dessa de novo, porque, da mesma forma que aconteceu a primeira e eu pensei 'cara, eu não posso deixar de fazer algo porque uma vez eu fiz e deu errado', e é assim que eu continuo pensando. Não me travo, não me baseio, não me deixo abalar por acontecimentos passados."

*Nomes fictícios para preservar a imagem da fonte.