O silêncio pode piorar as consequências do trauma

Em entrevista, autor de livro recém-lançado sobre traumas afirma que eles podem despertar o indivíduo para novos comportamentos

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O psicólogo Julio Peres, autor do livro 'Trauma e Superação'

Você já pensou em como uma experiência traumática pode mudar sua vida para melhor? O psicólogo Julio Peres já - e muito. Doutor em Neurociências e Comportamento pelo Instituto de Psicologia da USP, ele lançou recentemente o livro “Trauma e Superação: o que a Psicologia, a Neurociência e a Espiritualidade ensinam” (Edit. Roca), em que fala sobre como podemos aprender com diferentes traumas. De violência urbana a desastres naturais, Julio Peres falou ao iG Delas sobre as diversas situações estressantes, religiosidade e superação.

iG: Quais são os principais tipos de traumas que as pessoas podem passar e como eles podem proporcionar uma melhora na vida pessoal?
Julio Peres
: Em primeiro lugar é preciso saber que a maioria das pessoas já sofreu um sofrerá uma situação potencialmente traumática. Estas situações podem oscilar entre eventos mais conhecidos, como violência doméstica, acidentes, enfermidades, estupros, e assim por diante, mas também podem ser cumulativas, como pequenas situações estressoras, que envolvem respostas a um sofrimento ocorrido ao longo do tempo. Existem alguns fatores que colaboram para a incidência destes microtraumas, como centros urbanos, por exemplo, em que a ansiedade e a pressão são estimuladas, assim como a rivalidade – em detrimento da solidariedade –, e o núcleo familiar fragmentado. Tudo isso configura uma situação de solidão, desamparo, o que pode acarretar em uma situação de sofrimento. Então, são vários os fatores cumulativos que podem ir deixando ruídos num indivíduo, tal como aquele que a pessoa atravessa depois de um episódio traumático mais reconhecido. Mas este tipo de situação pode ajudar as pessoas a revisitarem seus valores, perspectivas e significados que elas dão à própria vida; a despeito do sofrimento, os eventos traumáticos são chacoalhadas que a vida dá e que despertam o indivíduo para novas reflexões e comportamentos, que colaboram, depois de algum tempo, para uma qualidade superior de vida. Depois que o processo de superação é concluído, a maioria dos meus pacientes costuma dizer que, se pudessem ter mudado alguma coisa do passado, não o fariam, porque o trauma vivido os ensinou muito.

iG: E como se dá este processo de superação?
Julio Peres
: A pessoa aprenderá a falar sobre suas dores, sobre o seu evento traumático, para assim revisitar seus talentos, seus recursos e capacidades de enfrentamento, trazer à tona as memórias de autoeficácia, se expondo a situações num plano imaginário. Por exemplo, se ela sofreu um acidente automobilístico e não consegue chegar mais perto de um carro, aos poucos ela irá se imaginar dirigindo, para depois chegar perto de um carro, sentar no banco do passageiro, depois do motorista, e assim por diante de maneira gradativa. Assim o indivíduo irá colecionando novas memórias que superam as memórias traumáticas. É como se ele estivesse atualizando a percepção para poder promover a resiliência.

iG: Desde quando começou a ser reconhecido que um trauma como um acidente, um assalto ou até um estupro, por exemplo, poderia colaborar para o posterior crescimento pessoal?
Julio Peres
: A partir de estudos que analisavam o comportamento de indivíduos que sofreram as mesmas situações traumáticas, como o terremoto da Cidade do México, em 1985, e o tsunami asiático, em 2004, que foram situações em que muita gente sofreu perda dos entes queridos, da casa, do trabalho, e assim por diante. Mas foi percebido que nem todas as pessoas respondiam ao trauma da mesma maneira e, ao contrário, algumas melhoravam de vida depois de algum tempo, então os especialistas começaram a prestar mais atenção à capacidade do indivíduo de atravessar momentos difíceis e dolorosos e voltar à qualidade satisfatória de vida, também conhecida como resiliência.

iG: Como dá para reconhecer um trauma e a necessidade de ajuda?
Julio Peres
: Uma pessoa pode reconhecer que precisa de ajuda quando há limitação na vida familiar, profissional ou então afetiva. Um paciente pode dizer: “Poxa, eu não me dou bem com ninguém, faço críticas ácidas aos outros, tenho dificuldade em me relacionar, projeto uma agressividade com todo mundo”. Estas características muitas vezes ocorrem por experiências que o indivíduo viveu, como uma situação em que se sentiu uma pessoa menor, apequenada. Estas respostas mais emocionais, de raiva ou agressividade, surgem como dinâmicas de proteção, de sobrevivência, mas sem que ele consiga perceber a razão. Ocorre uma limitação em relação ao entorno. Até mesmo pessoas com depressão podem descobrir que, na verdade, está depressiva porque sofreu um trauma na infância, por exemplo. Portanto, se um trauma não for tratado, ele ficará migrando sem revisitar o evento que gerou aquela situação recorrente de tristeza, de desamparo.

iG: Qual é o primeiro passo para o início do processo de superação?
Julio Peres
: Se a pessoa chega à psicoterapia, ela já tem uma motivação muito importante, que é o objetivo de melhorar. Mas é necessário um processo especializado que facilite essa melhora, porque a psicoterapia focada ao trauma segue alguns pré-requisitos muito importantes que não podem ser deixados de lado. Se um indivíduo simplesmente buscar uma terapia sem esse foco, ele pode reconsolidar as memórias do trauma. Se você começa a falar sobre um trauma específico, por exemplo, e começa a entrar em contato com o caos, com a ausência de significado, com o temor, a fragilidade, a impotência, você pode apenas potencializar sua dor se não houver uma elaboração deste conteúdo, porque não é só o falar sobre o evento, é o como falar sobre o evento. E aqueles que sofreram eventos traumáticos precisam, primeiramente, contar a história e criar um significado para o que aconteceu, mas num primeiro momento ele ainda expressa emoções e sensações de uma maneira intensa e fragmentada, e a narrativa fica dispersa, desestruturada. Então o primeiro passo é estabelecer esta estrutura e fortalecer a aliança do evento com aprendizado. E quando um indivíduo conta e reconta, o sofrimento vai atenuando e proporcionando uma melhor qualidade de vida, porque aquele episódio nos trouxe mais conhecimento e maturidade.

iG: Existem pessoas que possuem uma dificuldade maior para falar sobre um evento traumático. Como lidar com isso?
Julio Peres
: É um ponto muito importante. No começo do processo, é natural que o indíviduo não queira falar, porque é quase como voltar ao horror experimentado. No entanto, paradoxalmente, o efeito do silêncio é muito pior, ele precisa falar. “O

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Capa do livro 'Trauma e Superação', de Julio Peres

silêncio envenena a alma”, disse uma vez o Prêmio Nobel da Paz, Elie Wiesel. No início, as pessoas têm dificuldade, mas vários estudos mostram que quem se mantém em silêncio permanece com os mesmos sintomas por décadas, como pesadelos pós-traumáticos, por exemplo. Não falar pode amplificar a dimensão do sofrimento. Agora, se as pessoas chegam à psicoterapia logo depois do trauma, a superação ocorre mais rapidamente. Se as pessoas demoram muito para procurar ajuda, o transtorno de estresse pós-traumático corre um risco três vezes maior de configurar outras comorbidades como depressão, fobias, transtorno do pânico.

iG: Quais são os principais fatores que contribuem para o crescimento pessoal após um trauma?
Julio Peres:
Entre os fatores mais importantes vale a pena ressaltar a percepção de que você é capaz de superar. O trauma deixa você numa condição de fragilidade, de incapacidade, e quando você o supera, ganha uma confiança íntima em relação a novos enfrentamentos. Depois disso, trazer um significado mais amplo para a vida se torna necessário, para que você passe a ter um olhar mais aprofundado e mais tranquilo em relação ao significado de sua existência - o desenvolvimento de novos interesses e objetivos de vida. Tenho um paciente que estava traumatizado pela mãe ter sido diagnosticada com leucemia, mas então ele se engajou em campanhas para conseguir um maior número de doadores para pacientes com a mesma doença e este foi um dos principais aspectos da recuperação dela. Além destes fatores, o resgate da espiritualidade no dia a dia também é algo importante. Indivíduos mais religiosos acabam se referindo à religião como um recurso importante para a superação. Ter uma divindade protetora num evento doloroso ou traumático deixa um paciente mais fortalecido.

iG: Como se dá o papel da espiritualidade na superação?
Julio Peres:
Estudos mostram que pessoas com uma religiosidade intrínseca, que estão acostumadas a orar, mesmo que eventualmente, são capazes de superar adversidades graves mais facilmente em comparação às pessoas que não possuem nenhum tipo de religião. Isso acontece porque, diante do trauma, ela vivencia o caos, mas a religiosidade traz uma estrutura cognitiva e alguma maneira de atribuir significados que facilitam a recuperação. Então ela pensa: “O que será que Deus quis me ensinar com essa situação?”. Está é uma fala muito frequente. Em comparação àquela pessoa que se sente perdida, que não encontra nenhum significado para um evento doloroso, há uma dimensão de sofrimento muito maior do que aquela que processa o evento buscando algum sentido. E a religiosidade, em geral, colabora para isso: ela pode fornecer ordem e compreensão sobre eventos dolorosos e imprevisíveis. A espiritualidade, em geral, pode oferecer justamente o poder para responder às situações de vulnerabilidade, desenvolvendo um significado maior ao trauma.

iG: O que você indicaria para pessoas que vivem efeitos pós-traumáticos?
Julio Peres:
Além da psicoterapia, existem realmente alguns passos que podem ajudar as pessoas a superarem um trauma. Evitar a autovitimização é uma deles. O que você diz para você mesmo e para as outras pessoas pode tanto aliviar como exacerbar o sofrimento. Se você acreditar que o futuro trará conforto e será melhor, também é possível trazer o melhor para o presente. É preciso descobrir a importância de seguir adiante, de fortalecer novos objetivos, de engajar-se num novo projeto: desta forma o trauma vai perdendo força. Além disso, buscar o aprendizado que a experiência dolorosa pode trazer e, principalmente, falar da dor de forma adequada com pessoas que não interfiram o tempo todo no que você diz. Por fim, é essencial acreditar que vivenciar um trauma é um momento de travessia e que a vida pode ser melhor no futuro.

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