"Senti como se tivesse tido minha história roubada”, diz militante intersexo

Hoje é o Dia da Visibilidade Intersexo. Saiba o que essa data representa e por que ela é importante em termos de inclusão

Diferente do que passamos a vida inteira acreditando, XX e XY não são as únicas duas formas existentes na formação biológica de cada indivíduo . Um exemplo é o caso dos intersexo, o I da sigla LGBTQI+. Trata-se de pessoas que nascem com características fora do padrão do que se entende como masculino/feminino e que antigamente eram chamadas de hermafroditas.

Segundo a ONU, quase 1,7% dos bebês nascem com características intersexo, que é o mesmo número de pessoas que nascem com cabelos ruivos. Ou seja, se você conhece uma pessoa ruiva, você provavelmente também conhece uma pessoa intersexo. 

Bandeira do Movimento Intersexo
Foto: Reprodução/Pinterest/Equallove.org
Bandeira do Movimento Intersexo


Conforme explica a cientista social Carolina Iara, 27 anos, a intersexualidade é o fenômeno biológico que acontece quando pessoas nascem com aspectos biológicos fora do padrão binário de sexo masculino e sexo feminino. Há casos de pessoas que possuem pênis e útero, por exemplo.  

Foto: Arquivo pessoal
Carolina Iara, que também é uma pessoa intersexo




“Existem 48 tipos de intersexualidade listadas até agora pelas ciências. Você tem pessoas intersexo que apresentam uma genital atípica. Há pessoas que apresentam a intersexualidade nas questões hormonais ou endocrinológicas. Há casos que envolvem os órgãos reprodutivos. E, as vezes, é uma questão que aparece no cariótipo genérico, nos cromossomos e tal. Esses 48 tipos navegam dentro de todas estas questões que citei”, diz Carolina.


Foto: Arquivo pessoal
Thais Emília de Campos dos Santos

Para Thais Emília, de 42 anos, psicopedagoga e presidente da ABRAI (Associação Brasileira de Intersexos) , a definição de intersexo é dada a partir das variações das características corporais relacionadas a parte reprodutiva e do desenvolvimento do sexo.

“As pessoas podem perceber que são intersexo logo no nascimento, principalmente quando nasce com uma genitália diferenciada do que é esperado dentro da medicina normatizadora. Às vezes, a descoberta vem na puberdade quando não se desenvolve as características secundárias, por exemplo, a menina que não menstrua. E algumas pessoas chegam só a descobrir na vida adulta”, diz Thais. 

Por muito tempo, a intersexualidade ficou mantida em sigilo. Nem a medicina nem a sociedade quiseram falar sobre essa questão. Com isso muitos bebês passaram e ainda passam por cirurgias de mutilações genitais. 

Thais também é mãe de uma criança intersexo e escreveu o livro “Jacob(y), entre os sexos e cardiopatias. O que o fez anjo?”, que pode ser encontrado na  Amazon ou Play Store . Ela descobriu o estado intersexo de Jacob(y) durante a gravidez, numa ressonância fetal.

“No ultrassom, aparecia que ele tinha pênis, mas precisei fazer a ressonância porque ele tinha suspeita de anencefalia ou microcefalia. E durante as ressonância foi suspeitado que ele tinha um clitóris aumentado e não um pênis. Mas quando ele nasceu era um pênis mesmo, mas ele não tinha as gônadas, ou seja os testículos”, diz. 

Foto: Arquivo pessoal
Livro que conta as memórias de Thais e Jacob(y).


A partir daí, Thais teve diversos problemas em relação ao registro de Jacob(y). Primeiro, quiseram fazer uma cirurgia na genital da criança, sugerindo que o melhor era fazer uma vagina, mas Thais recusou. Com isso, o hospital não quis emitir a DNV (Declaração de Nascido Vivo), que é indispensável para obter uma certidão de nascimento. Sem esse registro, não se pode ter cartão SUS ou plano de saúde. Thais não tinha nem como solicitar a licença maternidade. 

Carolina conta que passou por cirurgias quando era bebê, depois aos 6 e aos 12 anos, tudo na tentativa de adequar seu sexo intersexo dentro de um padrão específico. “Foi uma forma bem dolorosa o modo que eu descobri, me senti como se tivesse tido minha história roubada”, diz. 

Por volta de 2017, Carolina começou a falar com amigas sobre algumas cirurgias que havia feito na infância, em específico na genitália. Foi aí que ela ouviu falar pela primeira vez no termo intersexo, que até então não conhecia.

“Eu fui tentando lembrar mais das minhas cirurgias, conversei com minha mãe, pesquisei sobre o assunto e fui atrás dos meus prontuários. Aí eu descobri que na época os médicos disseram para minha família que eu tinha nascido com um ‘defeito’ na genitália porque meus testículos não haviam descido e minha uretra terminava onde seria a vagina, não se completando até a região da glande peniana”, diz. 

A intervenção médica em muitos casos é usada para adequar os corpos dos bebês às normas e padrões estabelecidos na sociedade. É a lógica de "consertar" algo que está fora do esperado. As intervenções podem ocorrer através de cirurgias ou processos hormonais por longos períodos, o que pode trazer inúmeras sequelas físicas e emocionais.

Muitos militantes pelo movimento de pessoas intersexuais, são contra as práticas de intervenções médicas e defendem que haja uma espera para que a criança possa decidir ao longo da vida.

“Não são procedimentos de urgência, de vida e morte igual uma cirurgia cardíaca, que se não for operada a criança pode falecer em poucas horas. No caso de uma genitália diferenciada, é possível esperar a criança crescer e optar o que ela quer para o corpo dela. Afinal, as pessoas usam roupa, ou seja ninguém vai ver”, diz Thais.

Além do fim das mutilações genitais, há questões intersexo que carecem de um debate mais amplo. Confira algumas a seguir.

  • Inclusão das pessoas intersexo tanto no sistema de saúde quanto no educacional

O conhecimento é sempre a melhor forma de evitar preconceito. Para Thais, é essencial que professores abordem essas questões em sala de aula e que profissonais da saúde saibam abordar mães e pais sobre o assunto. Carolina aponta que em São Paulo existe o esforço do Comitê Municipal de Saúde LGBTI de fazer um protocolo intersexo, de atendimento as pessoas tanto na infância como na idade adulta, com foco nas necessidades pessoais do indivíduo.

  • Reconhecimento do terceiro sexo ou sexo diverso nos registros civis.

Essa é uma pauta super importante para o reconhecimento de direitos, não só para a populacação intersexo como também para pessoas trans não-binárias. “Hoje em dia não se tem nenhum reconhecimento humano para a população intersexo. Nosso Estado, inclusive, se nega a ver que pessoas intersexo existem", diz Carolina. 

  • Intersexualidade e transexualidade não são as mesmas coisas. 

Intersexualidade, embora esteja representada pela letra I na sigla LGBTQIA+, não está no campo do gênero nem da orientação sexual. Intersexualidade, como já explicado, está no campo da biologia, na formação do sexo de cada indivíduo.

Sexo biológico: masculino, feminino ou intersexo.

Você viu?

Identidade de gênero: cis (homem ou mulher), trans (homem ou mulher), travesti e pessoa não-binária.

Orientação sexual: hétero, gay, lésbica, bissexual, panssexual e assexual. 

De acordo com Thais, existe o campo de “sexo ignorado” na DNV para que a criança não fique sem certidão de nascimento. 

Foto: Reprodução/Manual de Preenchimento da DNV
Parte da Declaração de Nascido Vivo (DNV) com a opção 'sexo ignorado'.










No entanto, como no nosso país ainda não há um reconhecimento de um terceiro gênero, a medicina evita marcar como "sexo ignorado" forçando as mutilações genitais para manter a norma binária masculino e feminino como os dois sexos dignos de uma existência segura. 

Por fim, de acordo com Carolina, para que os corpos intersexo não sejam mais jogados para baixo do tapete é necessário ter bastante teimosia para enfretar e ter esperança não de um futuro mas um presente melhor.

“Eu sou uma existência marcada por ter muitas opressões num corpo só. Eu sou negra, sou intersexo, sou travesti, vivo com HIV e moro na periferia de São Paulo. E tudo isso faz parte de um sistema maior que escolhe quem vale mais, quem vale menos e quem pode até morrer ou não existir. Eu aprendi com tudo isso que tem no meu corpo, que a teimosia é o que me faz estar viva”, diz Carolina.  

Foto: Arquivo pessoal
Carolina e a mãe, Gisa Oliveira