"Tive que sair com meu filho no colo de madrugada por medo dele"
Ao Delas, Cristina* fala como foi viver no isolamento ao lado do marido agressor. Caso vale para lembrar que violência psicológica também é violência
Por Claudia Ratti |
Cristina*, 41 anos, viu o ex-marido tornar-se cada vez mais ausente e violento durante a quarentena. Ao Delas, a moradora do interior do Rio de Janeiro – onde a violência contra a mulher aumentou em 50% desde o início das medidas de isolamento, segundo o TJRJ – conta como foi enfrentar os dias em casa sob medo, xingamentos e negligência do ex em relação ao filho.
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“Quase não conseguia dormir de medo. Muitas vezes, tive que sair com meu filho no colo de madrugada para dormir na casa dos meus pais por medo dele”, lembra. Mãe de um menino de quatro anos, ela conta que o casamento durou cinco anos, mas não demorou muito para a violência começar.
“Ele começou a beber e perdeu o controle. Chegava em casa alterado, me xingando e humilhando. Eu tive muito medo, mas perdoei todos esses cinco anos”, fala. Desde o início da quarentena, medida adotada para conter o avanço nos casos de Covid-19, esse comportamento se intensificou.
De acordo com uma pesquisa feita pela Abead (Associação Brasileira de Estudo de Álcool e outras Drogas), o consumo de bebidas alcoólicas aumentou no Brasil durante a quarentena . As vendas cresceram 38% nas distribuidoras e 27% em lojas de conveniência. Segundo especialistas, esse é um dos fatores que agrava a violência doméstica .
Cristina relata que o ex-marido chegava bêbado e a humilhava: “Dizia que eu era um lixo, uma m* de mulher, me mandava para a casa do c*”. Ela fala que nunca houve violência física e, quando ele tentava ameaçá-la, usava a lei como respaldo. “Eu dizia que iria denunciá-lo na Lei Maria da Penha”. Fora isso, preferia o silêncio para não agravar a situação.
Além disso, há algumas semanas Cristina descobriu uma traição e pediu que o ex-marido saísse de casa. “Eu vejo com muito pesar não ter conseguido levar o meu casamento adiante, por bebida e adultério. Como eu lutei e perdoei… Ninguém casa para separar”, lamenta.
Desde então, ele não se comunica com o filho nem envia qualquer tipo de suporte à criança. Em relação a isso, Cristina diz que tenta ser forte para garantir o bem-estar do menino e não afetá-lo com a situação.
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Violência doméstica não é só física
Embora não tenha sido vítima de violência física, a situação de Cristina enquadra-se na definição de violência doméstica da Lei Maria da Penha (11.340/2006). Em entrevista ao Delas, a juíza do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Belo Horizonte (MG) Maria Consentino alerta que casos como esse são comuns e explica que a violência doméstica não é só física . “As violências se entrelaçam”, diz. No total, são cinco tipos: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Os xingamentos, constrangimentos e humilhações sofridos por Cristina, por exemplo, causam danos psicológicos e morais. De acordo com a lei, violência psicológica em ambiente doméstico e familiar é qualquer conduta que causa danos emocionais, diminuição da autoestima, prejudicando o desenvolvimento da mulher, além de degradar ou controlar suas ações, comportamentos, decisões e crenças.
Já no caso da violência moral , é a conduta que configura calúnia, injúria ou difamação. Por exemplo, rebaixando a mulher por meio de xingamentos que incidem sobre a sua índole. Além disso, a ausência do pai e negligência do filho, pode ser entendida como violência patrimonial se ele deixar de pagar pensão alimentícia.
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O silêncio
Ao ser questionada, Cristina responde que, sim, se reconhece como vítima de violência doméstica, mas não pretende denunciar formalmente para preservar o filho. Maria Consentino avalia esse silêncio como um dos principais obstáculos da Lei Maria da Penha.
“A dificuldade em denunciar começa com a dificuldade em reconhecer um projeto falido de casamento”, comenta ao avaliar o cenário de subnotificação de casos. “Há muito forte a ideia do homem perfeito e do casamento perfeito. É difícil reconhecer que esse final feliz não existe”, completa.
Nesse sentido, Thaís Santesi, idealizadora do Projeto Bastê (@projetobaste no Instagram), que oferece apoio terapêutico a valores populares e assessoria financeira a vítimas de violência doméstica, completa: “O número de mulheres que não buscam o apoio do Estado é alto. Isso porque na prática o sistema não é as mil maravilhas e elas sabem disso, pois em grande parte já precisaram utilizá-lo em algum momento e ele falhou ou conhecem quem tenha usado e foi negligenciada”.
A vergonha é outro fator que leva mulheres como Cristina ao silêncio. Thaís comenta que não são raros casos de familiares e amigos que julgam a vítima por manter o relacionamento, por isso, nem sempre elas conseguem expor a situação. E quando quebram o silêncio, dificilmente encontram apoio e empatia. “Isso gera muita vergonha porque a vítima se sente, além de humilhada, fracassada”, conclui.