Quando tinha 4 anos, Maria* já tomava banho sozinha para ir à escola. Um dia, enquanto o pai estava em uma oficina que mantinha no fundo de casa e a mãe trabalhava fora, um tio entrou no banheiro e colocou o pênis dentro de sua boca. “Nunca contei a ninguém da minha família”, revela a vítima do assédio sexual , hoje com 29 anos.
Além de não ter dito nada aos pais ou qualquer familiar desde então, Maria, que é produtora de eventos, também nunca registrou nenhuma ocorrência contra o tio. Ela conta ainda que passou a infância toda e parte da adolescência mantendo o assédio sexual que sofreu em segredo. “Somente no Ensino Médio, quando formei um círculo de amizade com meninas que realmente confiava, me senti acolhida e verbalizei essa situação pela primeira vez.”
Infelizmente, Maria não está sozinha. Confessar um caso como esse é muito mais difícil (doloroso e traumatizante) para a vítima do que pode parecer. Um exemplo disso é o escândalo envolvendo o médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus, que veio à tona nos últimos dias: mais de 300 mulheres que haviam passado anos caladas, finalmente encontraram força e coragem para denunciar o líder espiritual por abuso sexual .
Diante de tantas ocorrências sendo reveladas só agora, tendo em vista que o caso mais antigo, de acordo com os relatos, aconteceu em 1983, o motivo pelo qual essas mulheres demoraram a fazer a denúncia chegou a ser questionado. Mas a psicóloga Eliza de Paula considera que esse comportamento é bastante natural e compreensível.
“É muito comum uma mulher sofrer um abuso e não contar para ninguém. Muitas têm vergonha do acontecido, se sentem culpadas e só com o tempo, tratamento ou o próprio processo de amadurecimento entendem que elas foram as vítimas e não as causadoras da situação”, explica Eliza.
A psicóloga ainda afirma que, muitas vezes, o trauma é tão grande que as mulheres preferem não falar e fazem de tudo para não pensar no episódio. “Elas acham que com isso irão esquecer, o que não é verdade.”
No caso de Maria, manter o abuso em sigilo foi a maneira que ela encontrou para se proteger e não tocar em uma ferida que poderia machucá-la. “Fico pensando na minha família, em como eles se sentiriam se eu contasse o que aconteceu, em como isso ia desestabilizar nossas relações. Muitas vezes pensei se realmente acreditariam em mim.”
O medo de ser julgada, somado ao peso das consequências que uma denúncia de assédio pode ter contribuem para que as vítimas continuem caladas. “Eu também não tenho as coisas tão claras na minha cabeça, acho que a memória nos ajuda a apagar um pouco desses acontecimentos desagradáveis, além de eu ser muito pequena quando aconteceu”.
Ela conta que lembra apenas de não acreditar nessa situação. “Durante muito tempo encarei como se fosse algo que eu tivesse imaginado e não que tivesse efetivamente acontecido.”
A psicanalista e diretora da Escola de Psicanálise de São Paulo Débora Damasceno afirma que a demora em admitir o abuso também vem do fato de que na maioria dos casos a pessoa não se dá conta de que está ou estava sendo abusada.
“Diferente do estupro, que é uma violência direta, o abuso depende da interpretação de quem o sofre, um mesmo gesto pode ser considerado abusivo por uma pessoa e não por outra”, pontua.
Segundo Débora, esse fator também justifica a denúncia em massa, como no caso das vítimas de João de Deus , que passaram a registrar o crime depois que algumas mulheres disseram ter vivido situações abusivas em entrevista ao Fantástico , da Rede Globo , e o jornal carioca O Globo nas últimas semanas.
“Depois que uma pessoa nomina o evento como abusivo, as outras, que vivenciaram o mesmo evento, encontram nome e espaço social para o que pensavam ser uma exclusividade de sua experiência particular”, diz Débora.
“A maior parte das mulheres não falou antes por vergonha e quando descobrem que não foram as únicas, sentem-se encorajadas a fazer isso”, complementa Eliza, lembrando do caso envolvendo o ex-médico Roger Abdelmassih , que foi condenado por abuso sexual, com mais de 60 denúncias registradas contra ele na época, em 2014. “Quantas mulheres apareceram depois que a primeira falou?”, questiona, apontando o poder do empoderamento feminino para incentivar a denúncia.
Empatia é fundamental
A partir do momento que uma pessoa decide expor uma situação de vulnerabilidade, é importante que o entorno da vítima se sensibilize. “A melhor maneira de cuidar de uma pessoa que se sente abusada é perguntar a ela que tipo de tratamento, em qualquer aspecto, ela quer receber”, analisa Débora.
Nesses casos, a empatia é fundamental
para proporcionar um ambiente confiável para as vítimas. Segundo a diretora da Escola de Psicanálise de São Paulo, as pessoas que foram abusadas geralmente falam sobre o evento quando se sentem seguras e encontram o espaço social de reconhecimento para os seus sentimentos. “Nesse momento elas irão procurar alguém de sua confiança para compartilhar suas lembranças e emoções.”
Eliza ainda complementa a orientação da colega de profissão chamando a atenção para o apoio na busca por uma ajuda psicológica. “Quem quer ajudar deve apoiar e também entender os sintomas da patologia que ela por vir vier a desenvolver, seja ela depressão, síndrome do pânico ou estresse pós traumático - cada pessoa responde de uma forma à uma situação. Além disso, deve-se sempre incentivar a procurar ajuda de um profissional”
Denunciar colabora para a recuperação
Se abrir sobre o ocorrido nunca será uma tarefa fácil. As especialistas concordam que essas situações são devastadoras psicologicamente e, às vezes, até fisicamente falando. Eliza comenta que há inúmeros casos de pessoas que depois de sofrerem o trauma tentam suicídio, ou desenvolvem doenças como depressão ou síndrome do pânico.
“Elas precisam de acompanhamento psicológico e muitas vezes psiquiátrico, com uso de medicamentos para tratar os sintomas que o trauma causou. Às vezes, são necessários anos de tratamento para que a pessoa possa voltar a ter uma vida normal.”
No entanto, denúnciar pode ser fundamental para recuperação. O ato pode fazer com que a vítima sinta que pelo menos o indivíduo que causou seu mal será punido, podendo diminuir, de alguma forma, sua angústia, conforme aponta a psicóloga.
“É na psicoterapia que ela vai falar sobre assédio sexual e o terapeuta vai trabalhar o trauma para que esse aos poucos seja amenizado. Fazer desaparecer, infelizmente, não é de nossa alçada, mas podemos ajudar com que a ferida cicatrize e a vítima possa novamente ter uma vida mais leve ”, garante.