Fhoutine Marie

Elize Matsunaga: quando o passado de acompanhante incomoda mais que o crime

Nove anos após o crime, o caso Elize Matsunaga agora é contado em documentário na Netflix; veja algumas questões abordadas na minissérie dirigida por Eliza Capai

Foto: Reprodução/Netflix
A série 'Elize Matsunaga: Era uma vez um Crime' reconstitui o caso da mulher que matou o marido que pretendia lhe internar


Em 5 de dezembro de 2016, Elize Araújo Kitano Matsunaga foi condenada pela justiça de São Paulo por homicídio, destruição e ocultação de cadáver. As penas correspondem a 19 anos, 11 meses e um dia de prisão. Eliza cumpre pena desde 2012, quando confessou ter matado o marido, Marcos Kitano Matsunaga. 

O caso ganhou grande repercussão midiática na época do crime e do julgamento e voltou à discussão pública com o lançamento do documentário “Elize Matsunaga: Era uma vez um crime”, da cineasta Eliza Capai. Apesar do título horrível - um trocadilho relacionado ao início dos contos de fadas - trata-se de uma ótima produção audiovisual. 

O principal mérito do documentário - que já foi acusado de “romantizar” a protagonista - é ir além da reconstituição de caso, mas sem forçar a mão, deixando que o espectador tire suas próprias conclusões. Neste processo surgem discussões importantes sobre privilégios de classe, misoginia e sobre o próprio sistema de justiça, que me parecem bastante pertinentes.



Ferida narcísica na masculinidade 

Entre os personagens entrevistados por Capai estão jornalistas que cobriram o caso à época, advogados de defesa e acusação, o delegado e o promotor do caso e pessoas relacionadas ao casal Matsunaga: os amigos da vítima (entre eles um reverendo) e a família da ré. Na reconstituição de como Elize e Marcos se conheceram, chama atenção com o fato de que aqueles homens poderosos e não por acaso, todos brancos - parecem pessoalmente afetados com o fato de que um homem de uma classe social elevada tenha sido assassinado por uma ex-garota de programa, a quem ele “tratava como uma princesa”.

Isso é enfatizado pela menção às viagens internacionais, aos presentes que Elize havia recebido do marido e ao fato de que - para aqueles homens - ele ser o marido dos sonhos, embora em dado momento seja revelado que ele traía a esposa sistematicamente com outras trabalhadoras sexuais, já estivesse em outro relacionamento há mais de 2 anos e que tivesse planos de mandar internar a esposa em uma clínica psiquiátrica. 

Vejam bem, isso não é um julgamento da vítima, mas antes que me interpretem errado, adianto: não acho que exista motivo para tirar a vida de outra pessoa a menos que a sua vida esteja sob ameaça. Mas como eu dizia antes, não é um julgamento da vítima, mas do que expressa a fala das pessoas ouvidas pela diretora do documentário.

Tanto os homens envolvidos na investigação do caso, quanto para os advogados da acusação parecem não ter dúvidas do motivo do assassinato: Elize matou por dinheiro e nada do que eles próprios afirmaram saber sobre a relação do casal parece fazer diferença.

O primeiro episódio é um show de horrores nesse sentido, porque 4 anos depois do julgamento que condenou Elize (com uma pena que está dentro do que o Estado brasileiro considera adequada para o crime que ela confessou ter cometido), eles queriam mais e não têm o menor pudor de esconder esse desejo de vingança.

O fato de uma ex-acompanhante não ser eternamente grata por um homem rico ter se casado com ela parece uma ofensa pessoal. Porque isso coloca em risco um modo de vida em que homens ricos poderosos pagam por serviços sexuais prestados por jovens pobres e bonitas, algo tão presente na cultura ocidental que está em praticamente todos os filmes e séries sobre homens poderosos - exerçam eles atividades lícitas ou não.

Nesse sentido, não basta que Elize tenha sido condenada a ficar presa por quase 20 anos e que tenha perdido totalmente o contato com sua filha, nascida do casamento com Marcos Matsunaga.

Trata-se da exposição do patriarcado diante de uma ferida narcísica: eles se sentem injustiçados não pela perda da vida de Marcos, mas pelo júri não ter concordado com eles que Elize matou por dinheiro. O modo de vida dos homens desta classe foi ameaçado e parece que eles ainda não se recuperaram do susto de imaginar que talvez um dia todas as mulheres que eles acham que haviam comprado possam se insurgir.



Exposição da vida privada: Olá, falsa simetria!

Em determinado momento do documentário, surge a discussão sobre sobre como a exposição da intimidade da vítima passa a ser utilizada como estratégia discursiva para tentar angariar a simpatia do júri - expediente, que já sabemos - foi bem sucedido, na medida que livrou Elize de duas das qualificações: o já mencionado "motivo torpe" (por vingança e dinheiro) e "meio cruel" (que a vítima ainda estaria viva quando foi esquartejada) - o que foi demonstrado não ser verdadeiro após depoimento de um segundo perito.

Para uma das entrevistadas, a jornalista investigativa Thaís Nunes, foi o primeiro grande caso em que era feita a exposição da vida privada da vítima, sendo a vítima um homem. Um dos maiores exemplos desta prática foi o julgamento de Doca Street, assassino de Ângela Diniz , história recentemente recontada pelo podcast Praia dos Ossos .

Estaríamos diante de uma nova tendência nos tribunais, em que mulheres assassinas de maridos escapariam da condenação após terem confessado o crime expondo a intimidade de seus falecidos? Bem, o número de mulheres assassinadas pelos seus companheiros permanece tão superior ao de maridos assassinados por esposas que pretendiam colocar no manicômio que foi preciso criar uma nova categoria jurídica para dar conta desse fenômeno: chama-se feminicídio.

Logo, não há indícios que comprovem a tendência de que possamos ter em breve, mais Elizes que Elisas Samúdio -  cujo assassino, o goleiro Bruno, deixou a prisão e segue sem pagar a pensão ao filho que teve com ela. 

O que podemos dizer a respeito da exposição de intimidades nos tribunais é: no caso Angela Diniz, a vítima foi julgada e o assassino saiu livre em seu primeiro julgamento, em 1980 e foi condenado, um ano depois, após uma intensa campanha de grupos feministas, a 15 anos de prisão. No caso Matsunaga, a acusação tentou condenar Elize utilizando o fato dela ter sido prostituta como algo que reforçasse o motivo torpe (teria matado por dinheiro) e a defesa, para se livrar de um agravante. Quem perdeu foi Elize, voltou para a prisão, onde já cumpria pena antecipadamente, por 4 anos e meio.

Dos delitos e das penas

Ao longo do documentário vemos diversos trechos da entrevista concedida por Elize em 2019, durante a saída temporária. O benefício é concedido pela Lei de Execução Penal para condenados em regime semiaberto que preencham alguns requisitos, como bom comportamento e é alvo de críticas de jornalistas e políticos conservadores, que mais de uma vez se engajaram na tentativa de acabar com o benefício, alegando que facilita fugas.

Entretanto, cabe dizer que menos de 5% dos detentos que recebem o indulto não retornam para a prisão. Trata-se de um número bem menor do que pessoas presas aguardando julgamento hoje no país, que correspondem a 33% da população carcerária - que é a terceira maior do mundo.

A crítica ao benefício, bem como à pena recebida por Elize expõe algo sério: a ideia de que o sistema penal serve para a vingança e não para fazer justiça. Embora Elize Matsunaga tenha começado a cumprir a pena antes do julgamento e tenha perdido o direito de ver a filha, que vive sob a guarda dos avós paternos, para vários dos entrevistados a pena parece não ser suficiente, mesmo estando totalmente de acordo com a legislação brasileira para crimes desta natureza, sem mais, nem menos.

Na verdade foi mais do que feminicidas famosos, costumam receber: Pimenta Neto só foi preso após 10 anos de ter assassinado Sandra Gomide e cumpriu 5 anos antes de passar para o regime aberto; o goleiro Bruno, apesar de ter sido condenado a 20 anos, ficou preso 8 anos e o já citado, Doca Street, cumpriu apenas 4 anos dos 15 a que foi condenado em regime fechado.  

Seria compreensível que a família de Marcos Matsunaga se expressasse insatisfeita com a pena. Afinal, nada traz de volta um ente querido. Contudo, a família não participa do documentário e o pouco que sabemos sobre eles são ditos por seus advogados ou pelas imagens de arquivo ou do julgamento, em que são mostradas imagens do depoimento de uma prima da vítima. Sabemos, porém que a família decidiu não recorrer da sentença e aceitou que 2 das 3 qualificações não tenham sido aceitas pelo júri.

A sanha que deixa de ser punitiva para se tornar vingativa não está na retórica das vítimas ou de seus parentes, mas na boca dos homens da lei, nas pessoas de quem se esperaria isenção para investigar e conduzir um processo criminal.

Mas afinal, romantizou ou não romantizou?

Nos momentos finais do documentário surge a pergunta: se a vítima fosse um homem pobre teríamos toda essa repercussão? A resposta está nos dados do sistema prisional: a maioria das pessoas presas no Brasil hoje foi condenada pelo tráfico de pequenas quantidades de drogas e, sempre bom lembrar, um terço dos presos é inocente até que se prove o contrário.

Retratada no julgamento como uma psicopata fria que teria esquartejado o marido ainda vivo, a parte final nos mostra uma Elize religiosa, que se emociona ao ver a tia e a avó, revelando o medo de nunca mais voltar a vê-las. Uma mulher que cometeu um crime, confessou sua autoria e está pagando por isso de acordo com o que prevê a lei, aplicada com mais rigor que em casos em que os autores dos crimes semelhantes ao que ela cometeu eram homens de posição.

Não vemos a imagem de um monstro. Talvez isso seja o maior incômodo: mostrar que monstros não existem, apesar de toda a insistência do júri e da imprensa de desenhar uma personagem que recusou a grande oferta de um “príncipe encantado” fazer dela uma “mulher decente”.

O documentário se encerra mostrando que o sistema penal obedece a certos critérios e que em seu pleno funcionamento, não deixa de estar permeado pela misoginia e pelos preconceitos de classe. Incomoda porque mostra que crimes terríveis podem ser cometidos por pessoas normais. Não existem monstros. Tampouco, príncipe encantado.