Para muitas mulheres brasileiras, uma simples visita até a loja de cosméticos já foi uma experiência completamente frustrante. Entre as prateleiras de maquiagens, era quase impossível encontrar um tom de base que não fosse extremamente claro, bege ou esbranquiçado. A indústria da beleza ignorou, durante décadas, a existência de pessoas não-brancas como potenciais consumidoras e sequer considerou a criação de produtos específicos para esse público alvo.
“Eu sempre sofri para encontrar bases que fossem similares ao meu tom de pele, desde que me entendo por gente”, conta a dona de casa e ‘consumidora ávida de maquiagem’, Maria Fernandes Cardoso. “Por ser uma mulher preta, sempre ouvi de lojistas que as empresas preferiam não fabricar lotes de tons mais escuros, porque não vendia”, confessa.
A dificuldade de Maria em encontrar seu tom nas prateleiras é a mesma de diversas mulheres negras no país: segundo o levantamento Pele Negra, produzido pelo Google, 14% das entrevistadas não sabiam combinar os produtos de maquiagem com a cor de suas peles, enquanto 6% afirmaram não encontrar o tom de pele nos portfólios das marcas de beleza.
E é na tentativa de transformar esse cenário que a empresária carioca Rosangela José da Silva desenvolveu sua inovadora marca de cosméticos, Negra Rosa. Com sete tons de base especificamente desenvolvidos para a pele negra, batons, glosses, sombras e até produtos para o cabelo, a empresa se destacou no mercado nacional pelo pioneirismo e cuidado com o público alvo.
Por mais que a empresa só tenha saído do papel em 2016, a presença de Rosangela no universo da beleza surgiu muito antes, em meados de 2010. Em tempos de MSN, Orkut e de pouquíssima presença de blogueiras negras na internet, ela criou seu próprio canal no Youtube, onde ensinava penteados, tutoriais de maquiagem e dicas de moda e beleza.
“Quando eu comecei, o YouTube e os blogs não eram uma área profissional que é hoje, onde influenciadoras conseguem ganhar dinheiro com isso. Para mim, era apenas um hobby” conta Silva. “O intuito era compartilhar com as pessoas o que você estava usando, e, na época, a maioria das pessoas que eu encontrava na internet falando sobre maquiagem eram brancas, e eu sabia que, em mim, aquela maquiagem ia ficar completamente diferente. Resolvi, então, postar o que eu fazia para meu cabelo e minha pele.”
No intuito de compartilhar mais sobre seu dia a dia, Rosa também criou o próprio blog, homônimo à marca. Nas páginas do site, a profissional publicou mais de 300 posts entre 2010 e 2015, avaliando produtos, testando finalizações e promovendo a autoestima e a estética negra entre suas seguidoras.
Mesmo conquistando certo sucesso entre seu público, ela ainda não estava satisfeita. “Eu queria um batom com meu nome, mas sabia que só as blogueiras mais famosas conseguiam fazer isso.” Sem nenhuma pretensão, a amiga de Rosangela sugeriu a criação de uma marca própria. “Ela chegou e falou: vamos fundar uma marca para a pele negra? E foi assim. Começamos totalmente do zero”
Mesmo sem muito conhecimento sobre a indústria, Rosangela topou a proposta da amiga. Com a criação da marca, ela queria atender a parcela da população que não conseguia se ver representada nas gigantes da indústria, que pouco pesquisavam ou desenvolviam produtos para peles negras.
“Começamos realmente sem nada. Analisamos: o que precisamos para abrir um CNPJ? O que precisamos perguntar para nosso contador? Como fazemos o nosso produto? Foi todo um processo de aprendizado, tudo muito compacto, no início era eu, ela e o marido.”
A produção dos produtos contou com reuniões diretas com os formuladores, marcadas no intuito de desenvolver subtons exatos para a pele negra. “Tivemos que explicar essas diferenças em relação à pele negra que às vezes é pigmentação de um batom para ele pode estar certo, mas para mim, não vai ser porque os tons de pele são diferentes.”
Os primeiros produtos a serem lançados pela marca foram três batons semi-matte. “Foi com toda essa pegada de um produto direcionado a nossos lábios, que são mais escuros e pigmentados. Os produtos sempre vieram para atender uma necessidade que eu via como consumidora e também ouvindo outras mulheres negras.”
Presente
Desde então, a Negra Rosa expandiu seu catálogo de beleza, desenvolvendo corretivos, pós compactos, blushes, iluminadores e sombras para o público alvo. Mas nenhum produto causou tanto impacto nos consumidores e na mídia quanto a linha de bases líquidas, lançada em abril de 2017. Na época, a linha contava com 5 tons, que se transformaram em 7 em 2019.
“O mercado, por mais que às vezes ele traga um produto para pele negra, é sempre aquele tom médio, deixando as mulheres negras retintas sempre em último caso. Eu queria mudar isso”, explica.
E o sucesso da linha não é por pouco: na época, pouco se discutia sobre a invisibilidade de peles não-brancas em produtos cosméticos. Pioneira, Rosangela lançou os produtos antes mesmo do boom internacional de revisão da tons de base, que surgiu com o lançamento e popularização da base da Fenty Beauty, da cantora e empresária Rihanna. Em sua estreia, em 2017, a linha criou 40 tonalidades de base e corretivo, valor expressivo para o momento.
“Antes da Rihanna, não se via essa discussão internacional. As marcas simplesmente ignoravam a existência de mulheres negras, principalmente as retintas. E é incrível ver que aqui no Brasil isso surgiu meses antes, com a Negra Rosa”, conta a maquiadora especialista em peles negras, Júlia Nascimento.
Rosangela rebate a ideia de que produzir tons mais escuros seria “difícil” e “nada rentável”, como afirmam alguns empresários do ramo. “Quando lancei a marca, vi que muitas pessoas questionaram: ‘nossa, a gente ouvia no mercado que é muito difícil fazer produto para a pele negra’. Não é. É porque essas pessoas realmente não têm a vontade de entender as necessidades dessa população e nem de trazer produtos de qualidade para as pessoas negras.”
Parceria com a Farmax
O futuro, para Silva, reserva grandes oportunidades: no início de fevereiro, a gigante de cosméticos e higiene pessoal Farmax anunciou a incorporação da marca Negra Rosa em sua linha.
“Por meio da Negra Rosa a proposta da Farmax é justamente potencializar o desenvolvimento, a fabricação e a distribuição de produtos dessa natureza. O aumento de escala certamente irá possibilitar um preço de venda mais acessível e maior oferta dos produtos”, afirma, em nota, o CEO da Farmax, Ronaldo Ribeiro.
A meta, segundo o líder, é que a inclusão da marca seja promovida com inovação aberta nas áreas de marketing, pesquisa e desenvolvimento da empresa.
“A Farmax vai potencializar a Negra Rosa, sem dúvidas”, diz Rosangela. Além de um rebranding, a expectativa é que, a partir de maio, novos produtos já estejam disponíveis para a venda.
Além disso, a inclusão da Negra Rosa expandirá a distribuição dos produtos, uma vez que, antes da Farmax, a marca era comercializada apenas pela internet, em lojas específicas e com revendedoras. Com a nova empresa, será possível distribuir as maquiagens, cremes para o cabelo e produtos de skincare por todo o país. “Gosto de relembrar que as revendedoras não vão embora, pelo contrário, elas foram essenciais para o crescimento e vão continuar colaborando", afirma.
“Eu falo que essa junção foi uma coisa muito bonita, porque não é simplesmente pegar uma marca e tirar a identidade dela. Eu venho junto com a marca, a equipe que trabalhava com a gente veio junto para mantermos nossa verdade. Inclusive, as mulheres que estão na Farmax cuidando da marca são negras. É todo um cuidado e eu fico muito feliz que eu vou estar mais próxima desse processo”, finaliza.