"O mercado erótico não trata mulheres como protagonistas", diz escritora negra

Criando personagens negras em contos eróticos, Monique dos Anjos discute o prazer feminino pensado para as mulheres negras; veja mais

Foto: Reprodução/Instagram
A escritora Monique dos Anjos




O mercado de conteúdo adulto cresceu enormemente na pandemia. No entanto, segundo Monique Anjos, o material segue o mesmo: roteiro misógino, mulheres sem identidade, atrizes brancas, magras, submissas e irretocáveis. “Se já é difícil encontrar um filme na Netflix com uma protagonista negra, uma mãe ou uma figura feminina “comum” com a qual eu consiga minimamente me identificar, nos contos eróticos isso é ainda mais difícil”, comenta Monique.

Percebendo esse fato, a autora passou a criar narrativas nas quais as protagonistas dos contos são geralmente negras. “Digo não exclusivamente por que em alguns casos eu não falo da etnia da personagem (o que sei que faz com que elas sejam lidas como brancas). Já quando se trata de uma protagonista negra eu falo da cor escura da pele, do cabelo crespo, da vulva escura, com todos os tons de vinho, marrom e preto”, explica.

Monique coloca no texto tudo aquilo que acredita que sejam pontos fortes das mulheres negras, mas que são comumente associados a defeitos. Ela compartilha que já colocou uma mulher negra usando tranças para chicotear um homem, já descreveu uma cena em que o cara cheira as axilas delas deixando-as desconcertadas para, então, lamber a região. Tudo isso para fazer com que as mulheres, especialmente as negras, ao lerem, percam as inibições.


Todos os seus contos são escritos para mulheres. Para aquelas de corpos reais, ou imperfeitos, a depender de quem as vê, mães, inseguras ou confiantes, apaixonadas ou só desejosas de prazer sexual. Ao mesmo tempo, os contos não são revanche. São uma chance de equilibrar a conta entre o dar e receber prazer. 

“Não se trata de desvalorizar o homem (ou a mulher, porque temos cenas com os dois) e sim de trazer a atenção da leitora para o que se passa no corpo e na mente feminina). E tem coisa mais excitante para um homem do que ver uma mulher sentindo prazer? Eu quero descrever como ela se sente, o que é estimulante e o que a faz recuar, quero que essa mulher seja indesculpavelmente saciada em todos os aspectos”, diz. 

O prazer da mulher negra é afetado pelo racismo

Para Monique dos Anjos as mulheres negras não fazem parte do imaginário romântico ou afetivo das pessoas. Elas não são vistas como princesas, esposas, mas muitas vezes como amantes, a melhor amiga da atriz principal, sempre em um papel secundário.

O conceito de “solidão da mulher negra” explicita uma solidão que começa cedo, na escola, na falta do “primeiro namoradinho”, na demora para o primeiro beijo, na falta de par na festa junina, na ligação que não chega no dia seguinte. 

"Nos sentimos sós em lugares de luxo, nos sentimos sós nos ambientes corporativos... E vamos crescendo aprendendo a estarmos desacompanhadas...amar uma mulher negra deveria ser natural, deveria ser um prazer e um privilégio e não um ato de coragem. Eu levei anos para descobrir que nunca fui uma criança feia. Ninguém dizia que era racismo, mas de alguma forma eu era sempre deixada para trás”, comenta. 

Desta forma, para a autora o racismo estrutural dificulta o prazer da mulher negra porque não se trata somente de não ser aceita pela família do namorado (branco ou negro). Isso passa por não termos referências suficientes na TV, nos livros, no cinema. Enquanto for possível citar todas as princesas negras ou todas as atrizes que foram mocinhas de romance, significa que ainda são poucas. 

"Fica fácil acreditar que não temos valor. Porque simplesmente não temos costume de ver finais felizes com mulheres negras. E se não somos amadas, como é que vamos falar em gozar? Em ter prazer? Muitas vezes falta o par, a segunda pessoa para aquela nossa fantasia de romance”, finaliza.

Como tudo começou

Autora de contos eróticos voltados, principalmente para o prazer da mulher negra, o processo é recente. Tudo começou quando durante uma palestra, que Monique ministrava sobre relações étnico-raciais no Brasil, ela ouviu de um ouvinte: “Minha namorada não tem ciúmes de você porque você é negra”. Palavras que a levaram em um verdadeiro estado de questionamento próprio e incômodo. 

"Aquilo mexeu com a minha autoestima e mesmo sendo casada (e feliz) há 16 anos, voltei a me sentir a mesma garota invisível do colégio. É comum que mulheres negras sejam limitadas aos papeis de “amigona, cuidadora, ombro amigo, a guerreira” ou, no extremo oposto, seres hipersexuais que transam apenas para satisfazer os fetiches alheios”, relembra.

 “No início eu usava um pseudônimo para publicar os contos. Pura vergonha e tentativa de criar um mistério, até que a Mayumi Sato, do Universa me fez perceber que revelar quem eu era faria toda a diferença. Até porque, sou uma mulher negra escrevendo sobre e para outras mulheres negras”, continua.

Ela começou escrevendo como passatempo e dividia somente com amigas e amigos próximos. Mas eles ficavam pedindo por mais, a deixando motivada a continuar. “Eu recebia comentários do tipo “nossa, li e gozei em silêncio logo de manhã” ou “vou deixar para ler quando as crianças forem dormir”, comenta. 

Muitas das histórias vêm de inspirações de conversas com suas amigas. Para se empoderar e para se preparar para os contos e para as conversas que eles provocam, Monique foi ler sobre feminismo negro e não mais sobre sexo. Ela buscava entender se as dores de outras mulheres negras eram como as dela e queria poder curar a si mesma ao dar o protagonismo para uma personagem como ela. 

“Fui reler Chimamanda Ngozi Adichie (amo Americanah e recomendo como leitura de romance com mulher negra), fui ler Lelia González, Angela Davis, Bell Hooks, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Neuza de Souza Santos e tantas outras”, explica.

Durante os estudos, a autora percebeu que nunca houve falta de brilho, de sensualidade ou capacidade de expressar seus desejos sexuais. “Somos silenciadas, expostas, alvo de estudo e, quando tomamos as rédeas e nos tornamos narradoras, ainda assim tentam nos apagar da história. O que eu faço é inspirado em muitas dessas mulheres e se com isso eu inspirar apenas uma, já terá valido por todas as histórias escritas”. 

Pouco a pouco ela foi percebendo que nunca se tratou de descrever como uma mulher negra merece sentir prazer ou sobre gozar ou não. Foi sempre a respeito de ser vista, desejada, reconhecida e amada integralmente. "O gozo, espero, virá como consequência de um relacionamento sem egoísmo", finaliza.