Marisqueiras, agricultoras, cozinheiras, esteticistas, artesãs — essas mulheres e tantas outras em todo o Brasil, principalmente as da região Nordeste, sentem o peso das mil e uma tarefas executadas no dia a dia e da desigualdade de gênero quando o assunto é empreender. Muitas delas, o equivalente a 78,14% das entrevistadas, relatam que seus negócios surgiram pelo desejo de independência e ter seu próprio negócio.
Entre no canal do iG Delas no Telegram e fique por dentro de todas as notícias sobre beleza, moda, comportamento, sexo e muito mais!
O dado faz parte da pesquisa Perfil das Mulheres Empreendedoras do Nordeste, relatório inédito lançado nesta segunda-feira (24), pela Be. Labs, uma aceleradora de negócios e mentoria de empreendimentos femininos do Nordeste.
Das 600 mulheres ouvidas pela pesquisa, 92% afirmam que não deixariam de empreender para aceitar uma vaga de trabalho no regime CLT, isto é, dentro das regras da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) inserida na legislação brasileira.
A fundadora da Be. Labs, Marcela Fujiy, afirma que o relatório revela dados invisibilizados pelos principais institutos de pesquisa do país. "A maior dor do empreendedorismo feminino é ser mulher. Muitas de nós acabam sendo engolidas pelo mar de responsabilidades e tarefas relacionadas principalmente à sua vida doméstica e familiar, e não recebem o apoio necessário para seguir com suas realizações pessoais e profissionais. Muitas delas encaram seus negócios tendo pelo menos um filho, o que exige cuidados e as leva à exaustão. O que queremos propor com este levantamento é o resgate dessas mulheres por meio da valorização de seus talentos, do perfil empreendedor e, principalmente, da sua importância na economia".
Perfil das Mulheres Empreendedoras do Nordeste
Ao analisar o cenário formado por receios e principais dificuldades das empreendedoras nordestinas, a pesquisa aponta que 52,77% das mulheres disseram ter medo constante de fracassar em seus negócios, e que 33,16% encontram dificuldades em conciliar trabalho, estudo, família e vida pessoal. Há ainda um percentual de 18% de mulheres que dizem não serem reconhecidas em seus trabalhos.
Para dar o pontapé inicial nos empreendimentos, 71,70% das nordestinas usaram recursos de fonte própria como capital, sendo que 47,49% delas ainda possuem dívidas no cartão de crédito. Esse dado corrobora uma pesquisa do Sebrae, segundo a qual o valor médio de empréstimos bancários concedidos às mulheres empreendedoras é cerca de R$ 13 mil inferior à média dada aos homens, o que significa mais uma barreira impedindo o avanço de mulheres no projeto de ter negócio próprio e uma possível fonte de renda. Outro dado que diz muito sobre o empreendedorismo produzido por essas mulheres é sobre a monetização do negócio. A maioria das mulheres ouvidas, o correspondente a 84,24%, informou que trabalha com venda direta.
Sobre as áreas de atuação das empreendedoras participantes, se sobressaem os negócios relacionados à produção dos mais variados tipos de artesanato, confeitaria e alimentícios, com o equivalente a 41,56% dos negócios listados. E a maior parte desses negócios (82,9%) fatura na faixa de R$ 1 mil a R$ 50 mil ao ano.
O relatório também traz dados sobre a situação civil das empreendedoras nordestinas: 57,31% das entrevistadas são casadas ou vivem em união estável. Destas, 31% delas são integralmente responsáveis pelo sustento de suas famílias, mesmo tendo um companheiro, e 27,82% revelam poder contar com a ajuda financeira de seus parceiros. Outro dado importante é que 71,70% das mulheres ouvidas têm filhos.
Destaca-se no perfil das empreendedoras nordestinas o fato que 26,22% são mulheres pós-graduadas, o que não garante a elas maior retorno financeiro. Mais da metade das entrevistadas (56,11%) relatou receber de um a três salários mínimos (de R$ 1.212 a R$ 3.636 mensais de acordo com o mínimo vigente à época da pesquisa), e 28,05% delas recebem, por mês, menos até que o piso legal. Quando questionadas sobre o negócio ser sua única fonte de renda, quase 72% das mulheres responderam que não.
Esses dados reforçam a precariedade em que se encontra a estrutura financeira dessas empreendedoras, fato que compromete a longevidade de muitas iniciativas e explica a maioria dos negócios femininos ter entre um e três anos de operação, o equivalente a 36,08%. Outro informação relevante aponta que 34% dos negócios femininos não ultrapassam 12 meses.
Números nacionais podem ajudar a entender as diferenças de gênero no mundo do empreendedorismo. Mesmo quando as mulheres apresentam perfil mais preparado em relação ao dos homens, em termos de qualificação profissional e de escolaridade, há disparidade de remuneração e ganho entre os gêneros. Apenas 17% dos homens que empreendem têm ensino superior completo e, ainda assim, mais da metade consegue ganhar mais de três salários mínimos com seus negócios, o correspondente a 65% dos empreendedores do sexo masculino, enquanto apenas 46% das mulheres empreendedoras do país chegam a esse rendimento mensal.
No entanto, quando perguntadas sobre o impacto de gênero sentido em relação ao empreendedorismo e à aceitação do mercado com os negócios gerenciados por mulheres, um fato curioso vem à tona: 49,33% das entrevistadas discordaram totalmente da afirmação: "Foi mais difícil abrir meu negócio por ser mulher", enquanto 30,47% das mulheres concordaram totalmente com essa afirmação.
Marcela Fujiy explica que muitas mulheres só se dão conta da desigualdade de gênero depois que passam por um processo tardio de tomada de consciência. "Essas mulheres relatam num primeiro momento que não são afetadas pela falta de oportunidades e de incentivos, porque ainda estão em um processo muito particular de entendimento do seu papel na sociedade e do machismo estrutural em que estamos inseridos. Só depois que entram em contato direto com o mercado e com as dinâmicas de trabalho, que são tão distintas entre homens e mulheres, é que a ficha cai. Há muitos vieses inconscientes baseados na maneira como fomos criadas e programadas para assumir posições no mundo, que só conseguimos derrubar depois de muito tempo".
Recorte racial
A desigualdade no Brasil afeta a população como um todo nos mais variados níveis e camadas, mas, ao olhar para os dados de forma mais criteriosa, é possível perceber que as empreendedoras nordestinas que se autodeclaram negras, um percentual total de 64,41%, entre pretas e pardas ouvidas pela pesquisa, são atingidas de forma ainda mais cruel pelo racismo estrutural.
A pesquisa revela que, quando se estabelece uma relação entre raça/etnia e renda, das mulheres que recebem menos de um salário mínimo, as mulheres negras são as mais afetadas com o baixo orçamento. Elas representam 81,75% das entrevistadas, enquanto que essa porcentagem cai drasticamente para 18,25% quando se trata de mulheres brancas que recebem menos de um salário mínimo.
Outro recorte pode ser feito quando se relaciona raça/etnia com as mulheres que são "chefes de família", ou seja, mulheres que precisam prover totalmente ou parcialmente o sustento da casa. As empreendedoras nordestinas negras chefes de família representam 68,1% das entrevistadas, enquanto as empreendedoras brancas precisam cumprir essa função em apenas 26,4% dos casos.
Quando o assunto é endividamento, as negras também aparecem em desvantagem em relação às brancas na região. Empreendedoras negras possuem mais dívidas que empreendedoras brancas, com percentuais de 71,4% e 23,7%, respectivamente.
Sobre a pesquisa
Realizada entre setembro e outubro de 2022, a pesquisa se desenvolveu em seis etapas: estruturação e planejamento, elaboração do instrumento de pesquisa (questionário), pré-teste do instrumento, aplicação do questionário, validação dos dados e redação do relatório.
Foram entrevistadas 600 mulheres empreendedoras nas áreas de comércio, serviços e produção em cinco estados da região Nordeste que apresentaram representatividade de amostra. São eles: Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia e Alagoas. Foram consideradas mulheres empreendedoras aquelas que gerem algum negócio.
Os resultados da amostragem foram obtidos por meio da aplicação de um questionário online com perguntas baseadas na literatura acerca da temática do empreendedorismo feminino.
"Quisemos trazer aqui uma radiografia das mulheres empreendedoras do Nordeste, para que outras radiografias e panoramas possam ser obtidos em todo o Brasil, como uma forma de colocar as mulheres no centro da economia do país, mas acima de tudo no controle de suas próprias vidas", finaliza Marcela Fujiy.