Embora bissexuais e homossexuais ainda tenham um longo e tortuoso caminho a percorrer até uma realidade em que eles sejam tão aceitos quanto heterossexuais, as pessoas não costumam ter dificuldades em definir o que essas sexualidades significam na prática: ter atração por pessoas por pessoas de ambos os sexos ou do mesmo sexo. Mas e quando simplesmente não há atração sexual por ninguém? Por falta de informação e empatia, quem se enquadra nesse espectro - ou seja, é assexual - também sofre preconceitos.
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Conforme explica a jornalista Cláudia Costa, que se identifica como assexual e é autora do livro "A de Assexual: Entendendo a Assexualidade Humana", uma pessoa que está nesse espectro não sente atração sexual por outras, ou sente apenas sob circunstâncias bastante específicas, e, segundo a psicóloga Marilene Kehdi, ao contrário do que muita gente pensa, elas não ficam angustiadas pela ausência desse desejo de transar com as pessoas.
Porém, ainda que essa seja a característica predominante na assexualidade, pessoas que se identificam com essa orientação mostram que ela é mais complexa – e mal compreendida – do que parece.
Descoberta difícil, porém libertadora
Por falta de discussões a respeito desse tema, pode ser realmente complicado para uma pessoa assexual “se descobrir”. Para o estudante Erick Pires, 21, por exemplo, o processo foi repleto de angústia – não por ele não se atrair sexualmente pelas pessoas, mas pelo efeito que a reação das pessoas tinha nele.
“Constantemente me convidavam para alguma prática sexual e eu me sentia forçado a fazer sexo mesmo sabendo que não era minha obrigação, pois havia sido construído em minha masculinidade a ideia de que todo homem deve transar”, comenta, reforçado que, confuso, pensou que tinha algum problema de saúde, chegou a procurar a ajuda médica e apelar para remédios.
Quando o medicamento não teve efeito, porém, ele começou a perceber que não havia problema em negar contato sexual com as pessoas por falta de vontade, mergulhou nas pesquisas sobre o assunto, e, atualmente, lida bem com a questão. “Hoje eu encaro minha sexualidade de forma tranquila. O único problema é como os outros encaram ela”, completa.
Achava que tinha algum problema ou que ‘não tinha achado a pessoa certa"
Para a secretária Paloma (nome fictício), 28, a descoberta da assexualidade também não foi a coisa mais fácil do mundo. “Percebi que era diferente aos 16 ou 17 anos, mas não sabia que tinha nome para isso e muito menos que existia mais pessoas assexuais. Não foi fácil. Por muito tempo acreditei que algo em mim estava errado, que podia estar doente”, relata a moça.
Ela descobriu a orientação sozinha ao trombar com uma matéria sobre o assunto na internet e foi como se as luzes se ascendessem em sua mente. “Me encontrei, esse é meu modo certo de ser”, relata Paloma, ressaltando, porém, que a aceitação total veio apenas há cerca de cinco anos.
Cláudia também levou anos para entender o que se passava com ela. “Durante a adolescência, eu me entendia como bissexual. Era o rótulo de identidade sexual que chegava mais perto de como eu me sentia, pois me apaixonava pelas pessoas independentemente do gênero”, conta, ressaltando que, apesar de se definir assim, não se sentia totalmente contemplada pelo "rótulo".
O desconforto de Cláudia era pelo fato de que, apesar de amar ler, estudar e conversar sobre sexo, ela não sentia atração sexual por ninguém. “Achava que tinha algum problema ou que ‘não tinha achado a pessoa certa’”, relata. Foi então que, lendo uma ‘fanfiction’ (histórias ficcionais que abordam universos de livros, séries, filmes, entre outros, e são escritas por fãs), se deparou com um personagem assexual.
Curiosa, a jovem passou a pesquisar sobre o assunto mas, apesar de algumas características da assexualidade fazerem sentido, ela ainda não se sentia totalmente contemplada pelo assunto. Isso porque, na mesma época, passou a se envolver com um amigo que, até hoje, foi a única pessoa por quem ela desenvolveu atração sexual.
Foi então que Cláudia fez uma descoberta importante: alguns assexuais se atraem sexualmente por pessoas em situações bastante específicas, e mesmo os que nunca sentem desejo sexual por ninguém podem sentir vontade de fazer sexo ou participar de práticas sexuais.
Libido, atração sexual e "área cinza"
Pode até parecer contraditório que uma pessoa que não sente vontade de transar quando se envolve com alguém eventualmente chegue aos “finalmentes”, mas, conforme Cláudia descobriu em suas pesquisas sobre o tema, a assexualidade se manifesta de formas diferentes e tem diversos espectros.
Para entender isso, é preciso diferenciar libido de atração sexual, e, ao explicar a questão, Cláudia dá um exemplo prático. “Quantas vezes você já ouviu algum amigo dizendo que só queria transar, mas que a pessoa com quem ele iria transar era irrelevante? Fazer sexo às vezes é só sobre libido, desejo, e não tem relação nenhuma com a pessoa com quem se está praticando o ato”, afirma.
Além da vontade de satisfazer a libido, tanto Cláudia quanto a psicóloga afirmam que amor ao parceiro ou parceira ou a vontade de ter filhos biológicos também podem fazer com que algumas delas se envolvam com atividades sexuais mesmo sem se sentirem atraídas sexualmente especificamente pela outra pessoa.
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Enquanto Erick e Paloma se consideram assexuais estritos – ou seja, não sentem atração sexual nunca e dificilmente praticam sexo –, Cláudia pertence a outro grupo de pessoas dentro dessa mesma orientação sexual: o dos demissexuais.
Até em torno dos 19 anos, Cláudia nunca havia se sentido sexualmente atraída por ninguém. Quando se envolveu com uma pessoa nessa época, porém, as coisas tomaram um rumo diferente. “Eu não me identifiquei com a assexualidade porque só encontrava coisas sobre assexuais estritos, e, se eu tinha atração sexual por uma pessoa, não podia ser assexual. Foi só lendo bastante que me encontrei na demissexualidade”, afirma a jovem.
Para Cláudia e outras pessoas como ela, o desejo de fazer sexo com pessoas específicas é algo raro, mas acontece em determinados cenários. Naquele momento, ela percebeu que, para desenvolver essa atração, precisa ter um vínculo afetivo – e não necessariamente romântico – muito forte com a pessoa em questão.
Conforme ela explica, tanto os assexuais estritos quanto os que estão na área cinza podem acabar se envolvendo sexualmente com alguém, e isso vai depender da forma que ela encara o sexo. Algumas são sexo-negativas e não praticam nunca, enquanto outras são neutras – fazem caso tenha a oportunidade, mas não se esforçam para ir atrás de uma –, e as sexo-favoráveis, que sentem uma necessidade ocasional de saciar a libido e fazer sexo sem se atrair por pessoas específicas.
Autoaceitação não elimina o preconceito
Ainda que Erick, Paloma e Cláudia tenham se aceitado perfeitamente e não tenham problemas em falar sobre o tema, eles ocasionalmente se veem em situações difíceis quando pessoas questionam ou se recusam a aceitar a assexualidade deles. Paloma, por exemplo, chegou a ser casada, e, por mais que o relacionamento tenha terminado por outros motivos, ela conta que não era compreendida quando o assunto era sua sexualidade.
Geralmente me perguntam se eu já fiz sexo, se já fui estuprado, ou se eu gostaria de tentar transar para colocar à prova"
Erick conta que, além de as pessoas julgarem sua forma de viver, algumas fazem perguntas agressivas e o tocam sem consentimento. “Uma vez, uma pessoa que vivia insistindo para que eu transasse com ele voltou a insinuar que queria algo, disse que ‘comigo seria diferente’ e, do nada, agarrou minha perna, começou a passar a mão na minha coxa. Não é muito diferente dos heterossexuais que tentam ‘curar’ as lésbicas”, relata ele.
Segundo Erick, também é comum que as pessoas suponham que assexuais passaram por traumas relacionados a sexo e que a orientação deles é, na realidade, uma aversão causada por traumas. “Geralmente me perguntam se eu já fiz sexo, se já fui estuprado, ou se eu gostaria de tentar transar para colocar à prova”, afirma o rapaz.
Marilene explica, porém, que o fato de essas pessoas não sentirem atração sexual não tem relação com experiências passadas. “Ser assexual é mais uma forma de orientação sexual , a pessoa não sente necessidade, não está relacionado a traumas”, afirma a psicóloga. Distúrbios de libido também podem ser descartados já que, segundo o endocrinologista Danilo Höfling, essa condição é relacionada à angústia pela falta de vontade de fazer sexo , algo que assexuais não sentem.
Relacionamento é possível?
Outro questionamento que as pessoas costumam fazer sobre assexuais é a respeito da possibilidade de eles terem um relacionamento. Erick conta que, por ser um assexual arromântico – ou seja, que, além de não sentir atração sexual, também não se sente romanticamente atraído por ninguém – nunca teve um relacionamento. No entanto, isso não é padrão para todas elas.
Da mesma forma que as pessoas são capazes de se sentir sexualmente atraídas por outras sem necessariamente ter sentimentos por elas, ter apenas a atração romântica também é possível. Sendo assim, uma pessoa assexual pode ter um relacionamento se quiser, mas, se estiver envolvida com alguém alossexual (as que sentem atração sexual), as duas terão de caprichar no diálogo.
Para a jornalista, a melhor forma de entrar com o pé direito nessa situação é deixar tudo claro desde o início. “Por me identificar como demissexual, deixo claro que não sei se vai rolar atração sexual no futuro. Ficar ‘escondendo’ isso só aumenta as chances de eu mesma me fazer mal e, se eu começar um relacionamento sem ser honesta sobre quem sou, qual é o futuro dele? Sexo eventualmente vai ser ‘cobrado’ em um relacionamento com alguém não-assexual, e não falar sobre isso pode se tornar um problema”, explica.
Segundo a jovem, essa conversa não é fácil e tê-la logo no início pode fazer as pessoas acharem que as coisas estão indo rápido demais, mas garante que é como ela se sente mais confortável. “No final do dia, um relacionamento com além assexual não é tão diferente. As bases são as mesmas: honestidade, comunicação, respeito. O resto é questão de conversar e ver até onde cada um está confortável”, conclui.