É dever somente da mulher realizar os cuidados voltados para a manutenção do bem-estar e saúde das pessoas dentro de casa? Infelizmente, para muitos, a resposta é sim. Com isso, temos uma atribuição de papéis em que, para elas, cabe a responsabilidade do lar e, para eles, trabalharem fora e trazer o sustento para casa. Uma visão que não reflete mais a realidade brasileira, mas que ainda tem respaldo em uma grande parcela da sociedade.
Embora a desigualdade de gênero seja fortemente permeada pela nossa cultura, uma luta importante vem sendo travada pela maior equidade de tratamento e oportunidades, o que envolve o reconhecimento da economia do cuidado e destes trabalhos executados principalmente pelas mulheres. Tal ação busca não apenas valorizar economicamente atividades ainda predominantemente desempenhadas por mulheres, mas também a conscientização sobre a necessidade de maior participação masculina nesse âmbito.
Em sua definição, a economia do cuidado diz respeito aos trabalhos feitos para manutenção da vida, não só das pessoas que costumam demandar mais atenção, tais como crianças, idosos e aquelas acometidas por algum problema de saúde, mas de qualquer pessoa e, também, do planeta. O termo abrange o trabalho doméstico não remunerado, mas não se limita a ele, pois também incorpora atividades hoje profissionalizadas, como as de atenção à saúde.
Com a pandemia, a economia do cuidado se tornou uma preocupação global, visto que os cuidados, especialmente, dos grupos de risco demandaram uma maior carga de trabalho e esforços daqueles na linha frente em hospitais e, também, dentro de nossas casas. O isolamento trouxe à tona a indivisibilidade da vida profissional e pessoal das pessoas e, aquilo que era até então complementar, e que não enquadrava no rol de atividades econômicas, passou a receber atenção por ser indispensável ao bem-estar das pessoas.
Segundo dados divulgados pelo relatório Tempo de Cuidar (Oxfam), mulheres ao redor do mundo dedicam cerca de 12,5 bilhões de horas, diariamente, ao trabalho do cuidado não remunerado – o que, de acordo com a Organização Mundial do Trabalho (OIT), “é a principal barreira que impede as mulheres de entrarem, permanecerem e progredirem na força de trabalho”. Se elas fossem remuneradas pelo cuidado não remunerado, adicionariam, pelo menos, US$ 10,8 trilhões à economia global anualmente – quantidade que corresponde a mais de três vezes o valor global da indústria de tecnologia.
É fato que, hoje, há uma certa consciência sobre este tema, dados os impactos da pandemia e o trabalho de ativistas sobre questões femininas. Em maio, tivemos no Brasil o lançamento do grupo de trabalho para elaboração da Política Nacional de Cuidados e, em nível global, vemos o aumento de investimentos na construção de casas de apoio, creches, e outras instituições de cuidado, o que ameniza a sobrecarga de trabalho em casa, mas não resolve a questão. Uma maior equidade ainda está muito longe de ser conquistada, uma vez que não basta apenas dispor de políticas públicas, mas sim ser preciso uma mudança dentro e fora de casa.
Mesmo com a remuneração de algumas atividades da economia do cuidado, como os cuidados com idosos, babás, e outros similares, a desvalorização destes serviços ainda é evidente. Hoje, uma mulher no emprego doméstico no Brasil ganha cerca de 78,44% do rendimento de homens que exercem as mesmas funções, de acordo com a Pnad Contínua. E, se o trabalho doméstico tem gênero, ele também tem cor. Quando a mulher branca não assume todas as responsabilidades do cuidado, é a negra quem é contratada, normalmente, por uma remuneração ainda mais baixa.
Indo além das políticas públicas, para que possamos promover uma verdadeira mudança estrutural, precisamos tratar devidamente a questão do cuidado em todos os âmbitos da nossa sociedade. Nos lares, isso significa não apenas dar o devido reconhecimento financeiro àquelas que desempenham esses serviços, mas também estimular que os homens assumam responsabilidades e respondam pela manutenção do bem-estar e saúde das pessoas dentro de casa, desprendendo a associação destas atividades ao feminino.
A mesma premissa vale para os ambientes corporativos. Ter um plano de ação voltado para a diversidade e inclusão não é suficiente, sem que se crie um espaço de discussão sobre a incidência das responsabilidades do cuidado e se apoie essa conciliação aos deveres profissionais. Afinal, quando uma mulher começa a somar múltiplas responsabilidades do cuidado, como a maternidade e o cuidado de idosos, sua carga laboral aumenta consideravelmente e, não são os raros os casos em que acaba impedida de progredir na carreira ou de se dedicar a uma atividade econômica, o que não costuma ocorrer com os homens.
Ao não conferimos valor ao desempenho das atividades do cuidado, limitamos o impacto de ações voltadas para a promoção da equidade. Muitas das crenças mencionadas e separatórias de gênero são transmitidas de geração em geração, o que “justifica” a dificuldade de colaboração entre homens e mulheres nesses serviços. Contudo, quanto mais essa questão for discutida e suas consequências realmente compreendidas, para além da implementação de políticas públicas, mais rápido a “igualdade entre gêneros” poderá ser uma realidade.
Estima-se que, em 2050, o Brasil terá cerca de 77 milhões de pessoas dependentes de cuidados entre idosos e crianças, segundo uma estimativa do IBGE. Neste cenário, será imprescindível que todos reconheçamos, dentre outros, financeiramente o trabalho de quem cuida, fomentando sua dissociação do feminino. Se muitas mulheres saíram de casa, diversos homens ainda não entraram – uma balança que precisa ser equilibrada o quanto antes para que elas não sofram mais com essa sobrecarga sem reconhecimento.