Moradora da periferia de Fortaleza, Dalva Maria Santos Pereira, de 47 anos, negra e analfabeta, preparava o café da tarde para a filha, Francisca Érica Pereira Souza, de 19 anos, quando policiais bateram no seu portão. “Eles chegaram aqui em casa e perguntaram meu nome e eu respondi: ‘Sou a Dalva’.”
Quando ela saiu de dentro de casa e levantou a mão para pegar a chave do portão, os policiais apontaram as armas em sua direção. “Eu falei: ‘Moço, vou só pegar a chave’. Quando eu abri, eles me deram ordem de prisão [em flagrante]”, contou Dalva à Agência Pública .
Ela relata que foi chamada de “ladra” e “vagabunda” e que, sem nenhum mandado em mãos, os policiais a acusaram de aplicar golpes junto a outras pessoas no aplicativo OLX. Os agentes da Polícia Civil alegaram que ela estava presa pelos crimes de formação de quadrilha e receptação de uma cadeira de rodas, até então proveniente de uma vaquinha feita por algumas mulheres e por sua cunhada.
A cadeira em questão era uma doação para Érica, que desde os 13 anos tem perda total dos movimentos das pernas devido a um acidente de motocicleta.
As campanhas nas redes sociais para conseguir a doação já eram um fato público noticiado até por programas de televisão da região quando da prisão de Dalva, que depende do Benefício de Prestação Continuada (BPC ), garantido pelo governo federal em função da deficiência permanente da filha, e de bicos feitos pelo companheiro, Francisco Edilson de Lima Sousa.
Dalva contou sobre a curta alegria de receber a cadeira à época: “Eu não tenho tempo de me coçar. Eu só vivo nos hospitais. Quando a minha cunhada veio me doar essa cadeira, eu não vou mentir, fiquei muito feliz”. Dalva foi presa apenas três dias após a doação, em 19 de fevereiro de 2019. E Érica, ela diz, nem chegou a utilizar a cadeira, levada como prova do “crime”.
Na investigação policial, os agentes chegaram ao nome de dona Dalva porque a cunhada, Gisleuda Oliveira da Silva, e o irmão dela, Francisco Juliano Santos Pereira, teriam participado dos crimes de formação de quadrilha e receptação. Ela foi incriminada apenas por estar em posse da cadeira de rodas, que seria fruto dos crimes. Ela diz que, se soubesse da suposta origem ilícita do objeto, não teria recebido: “Nunca cometi crime algum”.
No dia da prisão, antes de ser levada à delegacia do 19 o Distrito Policial da Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE), a 5 km de distância de sua casa, a dona de casa fez um pedido aos policiais: não ser algemada.
“Bem-vinda ao inferno”
Sem antecedentes criminais e sem entender o que acontecia, Dalva pensou que ao prestar depoimento logo voltaria para casa. “Quando entrei no carro [viatura], eu olhei de rabo de olho e vi meu marido. Pensei que iria embora. Que nada, me levaram pra um presídio.”
No Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa (IPF), em Itaitinga, na Grande Fortaleza, Dalva ficou encarcerada por oito dias, o que contraria as regras para prisão em flagrante, que estabelece a necessidade de uma audiência de custódia perante o juiz em até 24 após a prisão, de acordo com a Resolução de 2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Na época, o único presídio feminino do Ceará abrigava mais de mil detentas. “Quando cheguei no presídio, fiquei em uma fila e me mandaram tirar a roupa. Me disseram: ‘Bem-vinda ao inferno’. Aí pronto, foi quando meu mundo desabou.” Ela relata que na cela lotada passou os dias só bebendo água, sem comer direito e sem dormir, dentro de um banheiro.
Érica conta que a mãe chegou a sofrer ameaças de morte por estar numa ala perigosa do presídio. A ameaça só não se concretizou, ela diz, porque algumas detentas souberam do caso pela repercussão nas TVs locais, em que se falava da inocência de Dalva.
Com apoio da Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará, Dalva recebeu liberdade provisória na audiência de custódia realizada oito dias após sua prisão, em 25 de fevereiro de 2019. “Quando eu passei os oito dias, vieram me buscar. Pensava que seria o dia de voltar. Que nada, fui direto pra audiência e me colocaram em outra cela”, conta. Dalva diz que seguiu o conselho de uma veterana do presídio: “Ela me pediu pra não chorar. Pra ser forte. Que eu teria que engolir o choro quando fosse falar com o promotor pra eles não pensarem que eu era culpada”.
Ao sair da audiência em liberdade, a primeira coisa que Dalva fez foi perguntar ao defensor de custódia se poderia chorar. “Fiquei no cantinho do banheiro, distante, do jeito que me pediram e chorando.”
A juíza Adriana da Cruz Dantas, que concedeu a liberdade provisória, estabeleceu o cumprimento de medidas cautelares. E ao longo de seis meses Dalva saía com passos apressados de casa e muitas vezes sem almoçar, acompanhada do companheiro, para ir ao Núcleo da Central de Alternativas Penais (CAP) assinar presença e participar de cursos de reabilitação, como exigiam as medidas.
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Ainda investigada
Três anos depois, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) ainda não fez a denúncia formal contra Dalva, e o caso está sob investigação. Procurado, o MPCE não respondeu à reportagem até a publicação.
Para o defensor público Ricardo Batista, titular da 15 a Defensoria Criminal da Comarca de Fortaleza e responsável pelo caso, não existem elementos para que o MPCE denuncie a dona de casa. Em novembro de 2020, o Ministério Público estadual solicitou informações, mas não houve movimentação do caso desde então.
Segundo o defensor, a prisão de Dalva chama atenção porque ela foi acusada apenas por estar em posse de uma cadeira de rodas. “Não havia elementos suficientes para prisão em flagrante”, avalia. Dalva contou em juízo que não tinha conhecimento de que a cunhada e o irmão estavam envolvidos na suposta prática de golpes pela internet e não sabia das circunstâncias ilícitas para obtenção da cadeira de rodas. “Então crime algum foi praticado pela dona Dalva”, completa o defensor.
Ele explica que, na ânsia de apontar os culpados, a Polícia Civil não se preocupou em investigar os elementos necessários para culpabilizar uma pessoa e acabou por gerar uma injustiça com Dalva. “Então pra eles [policiais] é aquela história do preconceito e do racismo estrutural. Ela mora num bairro pobre, é negra e tem um irmão que está preso. Pronto, essa é a equação perfeita para muitas pessoas hoje, infelizmente”, avalia.
Não bastasse a injustiça cometida contra Dalva, a filha Érica relata que até hoje não conseguiu uma cadeira de rodas motorizada para poder ajudar a mãe dentro de casa. “Em 2018, o hospital Sarah [Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação] me deu um encaminhamento prescrito com a necessidade de urgência de uma cadeira de rodas motorizada. Mas, desde a entrada do encaminhamento no hospital, não obtivemos respostas.” Dalva completa dizendo que a filha nem sequer tem uma cadeira adaptada para tomar banho.
Érica conta que perdeu uma cirurgia importante durante a prisão da mãe e reclama que emissoras de televisão, ao cobrir o caso regionalmente, contaram apenas o lado dos policiais. Ela foi xingada de ‘vagabunda’ em várias emissoras de TV. “A imagem da minha mãe foi destruída perante a sociedade. E pra reconstruir uma imagem de uma pessoa injustiçada, como é que fica?”, questiona.
Hoje dependente de remédios, Dalva tem receio de sair até para comprar pão na esquina de casa. O trauma: encontrar a polícia. “Ela não sai de manhã porque acha que, se sair, a polícia vai prendê-la como se ela tivesse quebrando o regime”, explica a filha. O marido diz que, ao ver um policial, a “pressão dela baixa” e já chegou a desmaiar de tensão.
Justiça criminal seletiva
O caso de Dalva guarda semelhança com outro mais recente no Rio de Janeiro, o do instrutor de surfe Matheus Ribeiro , de 22 anos, que também é investigado por receptação de uma bicicleta elétrica presenteada e foi vítima de racismo por um casal branco, no bairro do Leblon. No caso de Matheus, negro como Dalva, ele não foi preso, mas passou a ser investigado pela polícia fluminense por receptação, após indícios de que ele comprou uma bicicleta furtada – o que, segundo ele, foi um presente de sua namorada, que adquiriu, sem nota fiscal, o bem de um site de classificados on-line.
Para o diretor do Instituto Brasilieito de Ciências Criminais (IBCCRIM), Leonardo Palazzi, nos dois casos existem, de fato, generalizações discriminatórias que acabam respaldando uma justiça criminal seletiva. “Uma justiça seletiva é aquela que escolhe ‘seus clientes’ que são sempre aquelas pessoas [negras] que são levadas de maneira recorrente ao banco dos réus no aspecto da justiça criminal”, avalia.
Palazzi ainda explica que por muitas vezes as pessoas negras são colocadas diretamente como autoras de uma prática criminosa ao invés de vítimas, como aconteceu com Matheus e Dalva. “É importante compreender essa dinâmica das práticas discriminatórias que buscam evidentemente trazer concepções prévias da negritude para justificar a discriminação racial. Ou seja, a uma concepção que negros e negras praticam crimes e por tanto aquela discriminação racial da qual o próprio Matheus foi vítima seria justificada”.
A Pública apurou que o caso de Dalva integrará um relatório feito pelo Programa Justiça Presente, uma parceria do CNJ e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), sobre os seis anos de implantação das audiências de custódia no Brasil. A história de Dalva foi escolhida para mostrar a relevância dessas audiências, que foram estabelecidas em 2015.
Acerca do atraso para realização da audiência de custódia de Dalva, que levou oito dias, a Vara Única Privativa de Audiências de Custódia da Comarca de Fortaleza respondeu à Pública que, no período de fevereiro de 2019, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará ainda não havia regulamentado as audiências de custódia nos finais de semana e feriados. “Tal fato gerou um acúmulo acima da média de processos, o que acabava por impossibilitar que esta Vara realizasse as audiências dentro do prazo de 24 horas da comunicação do flagrante.”
Segundo o CNJ, as audiências de custódia, desde sua implantação, contribuíram para a redução de 10% na taxa de presos provisórios no país, atenuando o encarceramento em massa. Ainda em pesquisa , referente a dados de 2018, o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP), iniciativa do CNJ, revelou que das 813 mil pessoas presas no Brasil, 41,6% são presos provisórios.
Outro lado
Questionada sobre a abordagem policial truculenta, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informou que a pasta “capacita seus profissionais de segurança tendo como um dos pilares o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição da República Federativa do Brasil, não compactuando com qualquer conduta que desvie da legalidade da ação”.
Sobre o andamento do caso, a secretaria afirmou que o 19 o
Distrito Policial da Polícia Civil do Estado do Ceará “segue com diligências em andamento com intuito de elucidar os fatos e reunir indícios suficientes de autoria e materialidade dos envolvidos”. Se acusada formalmente e eventualmente condenada, Dalva poderia receber pena mínima de três anos por participação criminosa e um ano pelo crime de receptação, somando-se quatro anos ao total.